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CURT MEYER-CLASON, UM HOMEM SINGULAR
23-11-2016

Curt Meyer-Clason, um homem singular. Escrever sobre Curt Meyer-Clason (Ludwigsburg, 1910 -Munique, 2012) é recordar um homem singular. Um escritor singular. Saliento escritor, de que os Diários Portugueses (trad. João Barrento, ed. Documenta, 2013) são a prova. Aí encontra-se condensada uma visão de Portugal, uma visão de estrangeiro (amigo e estrangeirado), um olhar atento sobre a sociedade, as mentalidades e a cultura portuguesas. Um retrato de uma experiência de vivência (em forma diarística, com recorte literário e reflexão constante) da fase do fim da ditadura. Um livro de sagacidade mordaz, mas repleto de humor. Certeiro, muito atento e tremendamente bem escrito. E político. Um livro político. Mas terno também. Um livro que traz consigo a singularidade de uma visão do mundo (Weltanschauung), pelo olhar de um homem de causas, firme, que sabia o que queria.

Curt Meyer-Clason chegou a Portugal em 1969, nomeado como director para o Instituto Alemão, em Lisboa, a fim de dinamizar e divulgar a língua e cultura alemãs através da filial na capital portuguesa. Curt Meyer-Clason que havia já convivido com a língua portuguesa no Brasil, onde encontrara a poesia e a literatura brasileiras (traduziu João Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Jorge Amado, Drummond, Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, e também outros escritores latino americanos como Borges, García Marquez, Neruda, Octavio Paz, entre tantos outros), seria então nomeado para exercer funções na «pequena terra-mãe, de cepa dura, com a sua grandeza», Portugal, um país com 800 anos de História, para ele um ilustre desconhecido. Pairavam apenas as perguntas. Que Portugal seria esse? Que relações teriam os portugueses com a cultura? Seria Portugal, como muitos diziam, uma colónia cultural da França? Seria possível divulgar o saber, o pensamento, as artes, a música e a literatura alemãs em Portugal? E Lisboa, que interesses teriam as pessoas aí? Seria possível encenar Brecht numa cidade como Lisboa? Muitas perguntas às quais não podia, ainda, responder. Restava-lhe a tarefa (Aufgabe), por certo difícil, à qual saberia dar bom rumo.

Entre tantas interrogações o encargo de dinamização de um Instituto situado «na Avenida da Liberdade, num prédio de três andares, de finais do século XIX, que, apesar da sua situação privilegiada, seria possível passar anos e anos por ele sem descobrir, ao lado da porta, uma placa de latão cheia de verdete: DEUTSCHES INSTITUT — INSTITUTO ALEMÃO». Um edifício bem localizado, na artéria principal da cidade, mas em condições lastimáveis, repleto de maus e velhos hábitos.

Os convites à chegada a Lisboa: a transparência da luz e a elegância da arquitectura (suave, antiga), contrastavam com a imediata evidência do cinzentismo no ar, do sussurrar indistinto por entre as ruas, por entre as paredes à escuta, à espreita, com o tempo estagnado, putrefacto. O Instituto a condizer com o cinzentismo, desleixado, gasto, obsoleto, numa cidade adormecida —,  mas estaria totalmente adormecida? Nada melhor que descobrir. Curt procurava desde logo estabelecer laços, relações, vias de diálogo para conhecer as circunstâncias, para poder inteirar-se da realidade. É que, se as circunstâncias condicionam o homem, então o homem deve fazer por conhecê-las, por dentro, para que possa mudá-las. Foi o que fez através do convívio, da conquista da confiança das pessoas do Instituto; de saber mais sobre a cidade, conhecer a literatura, os jornais, observar, observar muito e atentamente, observar os hábitos, as pessoas, os comportamentos e procurar encontros adequados aos seus propósitos, conhecer os escritores, os poetas e os artistas, esses que têm, como forma de viver, retratar, entender e mudar o mundo.

Assim, aos poucos e através de aproximações, cartas, conversas, textos, polémicas, propósitos políticos, cívicos e sociais, os escritores começavam a aproximar-se. Ruben A, o primeiro de todos, ainda no Brasil. Em Portugal, José Cardoso Pires aproximou-se lentamente, como que a sondar o director, procurando perceber quem era, o que queria; mas também outros, tantos, Egito Gonçalves, Fernando Namora, Luandino Vieira, Paulo Quintela, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Sophia de Mello Breyner Andresen, Maria Velho da Costa, João Barrento, Almeida Faria, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade. Do teatro, Sttau Monteiro, Artur Ramos, Costa Ferreira. Da música, João de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça. Tantos outros.

A pouco e pouco as coisas começavam a progredir e o Instituto a tornar-se o lugar que Curt desejava: um pólo dinamizador de cultura e de saber, um lugar de encontros, um contributo para o progresso. Os planos de Meyer-Clason começavam, lentamente, a conquistar terreno. Aumentava o número de alunos inscritos no Instituto. Contra todas as adversidades iniciava-se a organização de iniciativas, textos, traduções, concertos, espectáculos. A programação cultural assídua do Instituto, muitas vezes com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, começava a atrair e envolver cada vez mais público, a instruí-lo, a prepará-lo, a dotá-lo de competências e a semear elementos para um futuro próspero, vigoroso, pungente.

Conhecer a cidade, o país, era essencial, só assim poderia fazer parte. E conhecer implicava não só desfrutar da beleza e da leveza, mas também enfrentar as suas agruras quotidianas. A tacanhez, a mesquinhez, as idiossincrasias dos portugueses faziam com que sentisse na boca um ligeiro travo a melancolia (por isso era preciso, dizia, «deixar desfazer-se a pílula amarga da tristeza, não a mastigar»). Não cedeu, não desistiu. E procurava entender não só o Portugal presente (1969–1976), mas as relações com o passado. Queria saber que país era esse, que crenças tinham as pessoas, as pessoas do dia-a-dia, as pessoas dos cafés, os trabalhadores, os jornalistas, os diplomatas, os políticos. O que significava o fado, o destino, a nostalgia, o mar, o tempo («Gostava que algum filósofo português, se é que tal coisa existe, me explicasse o que é o tempo para um português»). Procurava entender as relações com as colónias, com a Europa, esse Portugal como um país de costas viradas para Espanha e de face voltada para o mar, como escrevera Unamuno. E registava, apercebendo-se de algo tão visível na literatura: «A Europa é para os Portugueses o outro, que por um lado deseja a partir da distância, e pelo qual, por outro lado, se quer reconhecido, admirado, cortejado. A Europa é acima de tudo a França, ou seja, Paris, é este o único critério para aquilo que vale a pena imitar. Todos querem enfeitar-se de Europa (leia-se: Paris), mas ao mesmo tempo permanecer português, ou seja: uma ilha protegida de todo o contágio perturbador, pelo mar, pelos Pirenéus, pelo voltar de costas a Espanha», algo de muito enraizado, que o intrigava e encantava simultaneamente.

Curt Meyer-Clason trabalhava para divulgar a língua e a cultura alemã, não meramente com o intuito de um estrangeiro distante e alheado, mas com vista a uma emancipação, a um florescimento, ao cultivar de sementes que pudessem um dia originar ramificações fortes e duráveis. Tinha ambições concretas, específicas, ambições que concretizou com esforço e empenho. E os seus feitos foram a sua grande marca. Como apaixonado pelo teatro e pelas potencialidades do teatro como representação da vida e do mundo, tornou-se um dos grandes introdutores de Brecht em Portugal. A sua paixão pelo teatro, pelo cinema e literatura levaram-no a trazer e divulgar inúmeros autores como Rolf Hochhuth, Jean-Marie Straub, Tankred Dorst, Peter Weiss, Ernst Bloch, Thomas Bernard, Gunter Kunert, Reiner Kunze, Peter Handke, entre tantos. Promover, divulgar, colocar em diálogo a cultura alemã e a portuguesa, eis o seu grande propósito, a sua paixão, a sua tarefa, numa vida onde, como dizia, orgulhava-se de não distinguir entre trabalho e lazer.

Os anos passavam, à medida que os feitos eram alcançados, não sem desilusões, não sem dificuldades, mas com muitas conquistas. O senhor director fez uma revolução!, está escrito, em epígrafe, nos seus Diários Portugueses, Beatriz, a mulher da limpeza, referia-se assim a propósito do trabalho de Curt Meyer-Clason no Instituto. O Instituto mudava-se, em 1972, para o Campo Mártires da Pátria (onde hoje se encontra, no n.º 37), passando a chamar-se Goethe-Institut. O número de alunos no Instituto, o público, as iniciativas, as palestras, os ciclos, as peças, os debates, continuavam a aumentar. Contra oposições políticas, ideológicas, contra a censura matreira e rasteira, Curt marcava passo. Ele sabia bem para onde ia, sabia o que o movia aliado a convicções e paixões fortes. Com trabalho e entrega tudo se ia concretizando.

E a 25 de Abril de 1974, Revolução! Uma surpresa, é certo. Mas as revoluções fazem-se no tempo, no decurso do tempo, com persistência, acção, empenho, entrega, união. Trabalham como que subterraneamente, até que um dia, numa manhã de luz, abrem-se ao presente. Curt sabia-o. O país mudava. O que ele começara a construir, junto com outros, a muito custo, era agora o desejado, o essencial, o necessário. Os discursos políticos seguiam-se uns atrás dos outros. A televisão tornava-se o objecto mais luminoso na sociedade («Eu e Christiane que nunca víamos televisão, agora passávamos os dias, sentados no sofá, a ver as notícias, as imagens, o país em alvoroço»). Multiplicavam-se os discursos, os debates, as idas a festivais, a encontros, as viagens de comboio entre Lisboa e Santarém, as idas a Trás-os-Montes, o Norte, o Centro, o Sul, o Alentejo, os graffitis nas ruas mudavam, onde antes estava escrito o coração é o espelho da nação (a azul), aparecia agora Portugal Livre! (a vermelho), a censura oficial terminava, o país libertava-se. Era hora de regressar, o contributo estava dado, o presente vivo, o futuro, como sempre incerto, mas revestido de esperança («A utopia não deve nunca abandonar-nos»).

E numa vida que é tão curta, mas «que pode ser tão agradável  —  especialmente em Portugal», entre o sol da Caparica, a Caparica como um «recanto para desfrutar de tudo aquilo que alimenta e multiplica», por entre as ruas de Lisboa, os seus encontros, os seus cafés, as pessoas, os transeuntes, o Porto, o Alentejo, as cartas, os ciclos, a Fundação Gulbenkian, o Instituto, a diplomacia, os políticos, os Ministérios, os desentendimentos, as discussões, as ameaças de bomba!, o medo, «o medo de ser morto», a revolução, as pequenas revoluções, as conquistas, os amigos!, as festas, os cocktails, a Alemanha («Quando penso na Alemanha a meio da noite», Heinrich Heine), a política alemã, a RDA (o arrepio na espinha ao atravessar a fronteira, depois do encontro com o poeta Reiner Kunze), as memórias, as línguas, a cultura, a Europa, o Brasil, Portugal, as colónias, a ditadura, a censura, a resistência, Angola, Agostinho Neto, Luandino Vieira, a literatura, a poesia, os poetas, Goethe, Hugo Von Hoffmannsthal, Camões, Pessoa, Torga, o companheirismo, Christiane (a esposa!), as pessoas do Instituto (Herr Santos, Fräulein Lopes, Maria Rita), os almoços, os cafés, o mar!, a maresia, a saudade, a nostalgia, o futuro, o fazer votos no futuro, o semear e cultivar, Curt deixava a sua marca, deixou a sua marca, uma marca profunda, estável e segura como um gesto no coração da amizade.

 

Rui Esteves, in Caliban, 4/11/2016

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