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Kees van Dongen

Mas há, antes de tudo isto, um holandês na Holanda; de seu nome inteiro Cornelis Theodorus Maria «Kees» van Dongen, nascido no ano 1877 em Delfshaven, pequena localidade nos arredores de Roterdão; com anos de escola e jogos de uma infância sem história, e depois um adolescente que se viu longe dos bons comportamentos da sua terra natal e a frequentar, com a desenvoltura que esta nova liberdade incitava, a Real Academia de Belas Artes de Roterdão. Cornelis praticou desde logo uma militante oposição à austeridade judaica que dava nesses dias o mais alto tom aos costumes da sociedade holandesa; e viu-se envolvido num pequeno escândalo «visual» multiplicado com a ampla divulgação do Rotterdams Nieuwsblad, que achou por bem publicar nas suas páginas uma porção de desenhos vandonguianos com mulheres do porto muito explicitamente entregues à sua vida com marinheiros de acaso. Esta Holanda de austeras moralidades não convinha ao jovem Van Dongen que só via, como seu destino previsível, o de um trabalho burocrático na fábrica de malte do seu pai; e sonhava neste desagrado com as míticas liberdades de Paris.

[…]

Van Dongen foi «fauvista» até se descobrir como um pintor de mulheres que não renegavam a orgia da cor insolente, a joie de vivre da forma, mas fazendo-o apenas até ao sábio limite admitido pelo público que adquiria essas obras. Os rostos, os corpos femininos da sua pintura sucederam-se, fizeram-se mundanos e em ruptura com os valores dos seus dias anteriores de revoltado. Van Dongen fez-se um pintor de nevroses elegantes (disse-o Paul Gsell quando falou dele), uma moda consumida pela alta burguesia, comercializada com a exibição de uma sensualidade canalha mas que o não desmentia nos seus méritos como pintor. É evidente que o olhar irónico da sua facilidade mundana nunca iludiu uma vontade firme de se exercer com uma sub-reptícia sátira social; e que a sua indiferença perante resultados visuais, que se afastavam do modelo retratado, continha prazeres vingativos contra a burguesia que o alimentava. Às que diziam «não estou parecida», respondia: Quando alguém se deixa pintar por um pintor célebre, só lhe resta uma hipótese: tornar-se parecido com o retrato.

[…]

Em 1929 Van Dongen preferiu ser francês, e obteve sem dificuldade uma nova nacionalidade; tinha vivido como um autêntico francês os tempos mais gloriosos e mundanos da sua carreira de pintor.

Vinte anos mais tarde percebeu que a gente abastada do Mónaco lhe daria a pintar muitos retratos; que viveria lá rodeado de clientes para a sua pintura. Avançava na idade sem mostrar grandes desgastes físicos, e o clima era mais ameno. Mudou para Monte Carlo a sua residência, instalou-se numa casa cheia de sol a que chamou — talvez saudoso do difícil Montmartre de Paris — Bateau-Lavoir.

O principado venerou-o. Convidava-o para o seu palácio, mostrava-o nas suas festas, fê-lo membro de um júri no Festival de Cannes. Já muito idoso mas ainda activo, rodeado de estrelas de todos os firmamentos que não dispensavam aquele Midi na sua trajectória, pintou uma má tela com Brigitte Bardot que nunca se sujeitou a ficar — nesses anos de glória física — parecida com o seu retrato.

[Aníbal Fernandes, «Apresentação», A Vida de Rembrandt]

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