Le Clézio: «Quem não leu Heliogábalo não aflorou o verdadeiro fundo da nossa literatura selvagem.»
Artaud fez-lhe um dia notar [ao editor Denoël] que Heliogábalo, reduzido pela História à crueldade demente, realizava anarquicamente em si a identidade dos contrários e professava uma pederastia religiosa com origem numa luta sem tréguas entre o Masculino e o Feminino; e que apenas foi repugnante «por ter perdido esta noção transcendente e soçobrar no erotismo da criação em acto e sexualizada». Fascinado com esta ideia, e antegozando o que ela poderia oferecer depois de passar pelas complexidades de uma mente e de um talento literário como o de Antonin Artaud, Denoël propôs-lhe que escrevesse uma biografia desse imperador dominada por esta visão «heterodoxa» que beliscava a caução de reconhecidas competências e em muito afrontaria a opinião de conceituados historiadores.
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Pela visão de Artaud, este jovem imperador de tão curto reinado ocupou-se sobretudo em ser altíssimo exemplo de uma anarquia sexual que realizava a identidade dos contrários, respondia à confusão dos sexos e fazia-os regressar à pureza da androginia primordial. Citemos o próprio Artaud: «Heliogábalo é o homem e a mulher. E a religião do sol é a religião do homem mas que nada pode sem a mulher, o duplo onde ele se reflecte. A religião do UM que se parte em DOIS para actuar. Para SER. A religião da separação inicial do UM. UM e DOIS reunidos no primeiro andrógino. Que é ELE, o homem. E ELE, a mulher. Ao mesmo tempo. Reunidos em UM.»
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Ao polémico Heliogábalo, a passagem dos anos fez a desejável justiça. E não podemos, como prova inequívoca, deixar de lembrar o que a seu respeito disse o irreprimível entusiasmo de J.M.G. Le Clézio: «Ora aqui temos o livro mais violento da literatura contemporânea, quero eu dizer de uma violência bela e regeneradora. […] Quem não leu Heliogábalo não aflorou o verdadeiro fundo da nossa literatura selvagem.»
[Aníbal Fernandes]