Ana Marchand: «Cadernos de Benares é um projecto tripartido: a exposição com o mesmo nome, o filme Ana e Maurizio, numa colaboração com Catarina Mourão, e a edição destes cadernos.»
Benares não é um sítio, não é uma cidade.
Benares é uma ilha mítica, suspensa entre o céu e a terra e onde eu tive a ousadia de pousar os pés.
Na sua beira-rio de águas metálicas, mercúrio, iniciei uma viagem, uma infinita viagem.
Foi o ponto de partida, apenas um começo.
Lembro-me da primeira vez, o assombro com que os meus olhos tocaram aquelas superfícies, quando percorreram pela primeira vez aquelas margens.
A crueza da vida estava toda ali. Na primeira ghat que desci, em cada degrau repousavam criaturas disformes, sem nariz, as extremidades putrefactas, o corpo a desfazer-se em farrapos. Eram leprosos. Nunca tinha presenciado nada de tão perturbador.
A Índia mítica/mística começava com corpos em ruínas, aquilo que mais profundamente somos. Corpos em pedaços, farrapos a envolverem apenas nada.
Foi assim a primeira visão de Benares.
O choque repercutiu em mim como um tsunami.
Desci até à beira da água. Sentei-me e fiquei ali.
Na água, a cor do amanhecer, a bruma rosa, cobria como um manto de suavidade os inúmeros humanos que ali ora emergiam ora submergiam, naquele canal, o leito comum, da nascença à morte.
[Ana Marchand]
Edição bilingue: português-inglês.
Com o apoio da Fundação Carmona e Costa.