Urika — a negra perdida entre europeus oitocentistas. A raça intrometida numa sociedade branca que lhe fecha as portas a um amor realizado. Urika — ou os malefícios do racismo... anti-racista.
No seu Diário há em 1822 esta dúvida: «Fiz Urika sem saber se vale alguma coisa.» E quando está a terminar Édouard, escreve a Chateaubriand: «Estes romances fazem-me mal, remexem-me no fundo da alma um resto de vida que só serve para eu sofrer.» E quando escreve Olivier ou le Secret diz-lhe também isto: «Estou a escrever com um tema que já vos tentou [a impotência sexual]. Trata-se uma vez mais de um isolamento, é só isto o que eu sei fazer.» E um pouco mais tarde: «Não fazeis ideia do êxito de Olivier junto das poucas pessoas a quem deixei que o lessem. Mas vou atirá-lo para o fogo.»
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Há na obra literária de Madame de Duras três singulares novelas com temas relacionados, de formas diferentes, com a solidão.
Se Édouard, a personagem central da novela com este título, é vítima da intransigente diferença de classes da França anterior à Revolução, se Olivier esconde o segredo da sua impotência sexual (Stendhal lembrar-se-ia dele para escrever Armance), Urika, a negra desde criança a viver no meio de uma sociedade elegante e requintada, é vítima de um anti-racismo que a faz simultaneamente alvo de um racismo discreto e lhe fecha as portas do amor e do casamento; para Urika, negra entre brancos europeus oitocentistas, a desesperada opção do convento não significa mais do que a garantia de um retiro onde vai sentir diluído o confronto com um mundo que a tolera (a sua educação dá-lhe o comportamento exigido pela alta sociedade onde a sua protectora se movimenta) mas faz constantemente sentir que a sua raça não tem ali, naquela Europa nobre, naquela sociedade burguesa, direito a um amor realizado.
A sua «entrega a Deus» disfarça mal a vontade de se isolar de uma sociedade onde não consegue realizar «o desejo de ocupar o seu lugar na cadeia dos seres», ver realizada a sua «necessidade natural de afecto». E Urika tem uma frase decisiva e significativa quando diz a Charles, o homem que ela ama: «Charles, deixa-me ir para o único lugar onde vai ser-me permitido pensar constantemente em ti.»
[Aníbal Fernandes]