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«Antonin Artaud. Esqueçam os bons, este é para os maus fígados», por Rita Homem de Mello
09-01-2021

O Suicidado da Sociedade é daqueles livros desconcertantes destinados apenas aos maus fígados. Esqueçam os bons, os que peneiram todas as impurezas, os que se confessam, os que não esperneiam, os que não fantasiam, os que não se estilhaçam ou torturam, os que não torcem o pescoço aos sonhos para depois lhes focinharem o vazio, o pó.

 

Só um mau fígado é capaz de filtrar o “eu humano” na sua decadência, no seu castigo, nas suas visões, desvarios e devaneios, mas também no seu êxtase. O “eu humano” é esse termo a que Antonin Artaud, o autor deste livro editado pela Sistema Solar (2018), se refere em fúria.

Com tradução e prefácio de Aníbal Fernandes, este livro veio à praça no ano de 1947 quase um ano depois da exposição de vários quadros de Van Gogh no museu da Orangerie em Paris, numa altura em que Artaud se encontrava muito debilitado de saúde e tinha saído de um prolongado internamento psiquiátrico.

Em resposta a uma sugestão de Pierre Loeb, ilustre galerista e colecionador de arte, autor de Regards Sur La Peinture, Artaud decide escrever sobre Van Gogh, precisamente sobre o tanto que o emocionou essa exposição.

E qual foi o resultado dessa sugestão desafiadora? Este brilhante, nevrótico, fulminante livro. Este comovedor, tocante e terrivelmente lúcido testemunho.

[…]

A par desta vulcânica aceção de “suicidado” ao longo do texto, Artaud conduz-nos para o que de mais profundo na obra de Van Gogh o comoveu. E será essa comoção, esse transe que certamente comoverá também o leitor.

Porque fazem falta escritores que nos passem a ferro, e nos façam esquecer que escrevem; pintores como Van Gogh que nos façam esquecer que pintam, que se servem de uma paleta de cores, de tintas, de pincéis; dramaturgos que nos façam esquecer que estamos em cena, que estamos trucidados em cena, perdidos, depenados, mas que continuamos em cena. Porque fazem falta académicos que nos façam esquecer a Academia, versos que nos façam esquecer as estradas, cegos que nos ensinem a ouvir e mais suicidados que nos façam esquecer a sociedade vigiada, encenada, para que nos possa ser restituída a verdadeira, a orgânica, a maternal.

Artaud defendia que «Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno.» Este inferno a que Artaud se refere talvez possa ser o submundo das “vaginas cozidas”, conformadas, com que abriu o texto, toda a consciência doente, desordenada, automatizada, injusta. E esse inferno, assim como a tristeza sabemos bem que perdurará ad aeternum sim, mas felizmente, dele não serão cúmplices alguns suicidados.

 

Rita Homem de Mello, jornal i, 8 de Janeiro de 2021

Texto completo: https://ionline.sapo.pt/artigo/720405/antonin-artaud-esquecam-os-bons-este-e-para-os-maus-figados?seccao=Mais_i

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