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«Tristan Bernard. A sociedade que se baba por uma lágrima de arrependimento», por Rita Homem de Mello
20-01-2021

Entre a Espada e a Parede, Diário de Um Assassino é o único livro de Tristan Bernard traduzido para português. Editado pela Sistema Solar em Julho deste ano, com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, este é considerado o seu mais prestigiado romance.

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Este diário que decorre entre os primeiros dias de Maio e o dia da sua morte a dezasseis de Setembro é um diário no limbo, no limbo do desejo e da renegação, do ódio à vida e do receio da sua perda, da repulsa à ordem e da necessidade de um porto de abrigo. É um diário no limbo entre o absurdo e uma espécie de esboço teatral do aceitável, entre a obsessão e a fuga do real. É esta ininterrupta e avassaladora insatisfação que move cada passo do narrador, cada sua dúvida e hesitação. Mas esta insatisfação tirana e anémica é de tal maneira intrínseca e natural a este homem, que não há nada que possa adquirir por si só alguma importância. Não há nada a perder, da mesma maneira que não há a ganhar neste mundo fantasma, neste mundo humilhante e dissimulado (p.60) onde se «fabricava sem tréguas a felicidade ou a desgraça.» A felicidade ou a desgraça isso mesmo, e qual é a diferença para este homem? Nenhuma, e este diário é o registo exímio disso mesmo, da disfuncionalidade deste mundo, da indiferença, da estranheza de uma sociedade hipócrita, verruguenta, tão mais insegura que o comum dos Duméries. Não é Duméry que é um marginal, mas sim a sociedade raquítica, espurca, embostelada. A sociedade que se baba por uma lágrima de arrependimento. O que acontece é que Duméry não verte essa lágrima ougada por todos. Aliás, Duméry não verte lágrima nenhuma e é aí que entra a ironia como macronutriente predominante desta história. (p.142) «Mesmo que a Sociedade tenha instrumentos para todas as tarefas, só Deus e os assassinos sabem fazer-nos morrer.» ou ainda (p.145) «Há no céu mais lugar para um pecador que se arrepende do que para um justo que nunca falhou.»

[…]

Este livro é muito mais do que um diário de um assassino, é um diário poético de um homem acostumado a viver com o seu próprio abandono, com os seus livros, as suas poucas mulheres, os deus desvarios, a sua solidão aguçada e coerente. Duméry, o diarista desta história, terá que ser sempre lido como um homem acima de tudo coerente, e acima de tudo coerente para com o leitor. Um homem que não se deixou marionetar pelo “traje de máscaras” da sociedade burguesa parisiense da sua época. «Foi Deus que criou o mundo, mas parece ser o diabo quem o mantém», esta sua frase ilustra magistralmente este romance. Acima de tudo Duméry a cada nova leitura será um homem que já não está cá. Faltam homens que como ele já não estejam cá. Por outro lado, se virmos o seu diário num outro prisma, podemos também entender a sua escrita como outra forma de encenação. Afinal escrever também é encenar, ordenar, catalogar o absurdo, o obscuro, o estranho, o indecifrável, toda a maldição entre a espada e a parede.

Rita Homem de Mello, jornal i, 15 de Janeiro de 2021

Texto completo: https://ionline.sapo.pt/artigo/721155/-tristan-bernard-a-sociedade-que-se-baba-por-uma-lagrima-de-arrependimento?seccao=Mais_i

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