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Honoré de Balzac
Balzac [1799-1850] pressentiu-se desde cedo com talento de grande escritor; não foi portanto sensível ao juízo de júris sucessivos que consideraram detestável a sua tragédia Cromwell; menosprezou a evidência de os seus romances, assinados com os pseudónimos Lord R’hoone e Horace de Saint-Aubin, escritos sem brilho e sob uma lição que vinha de Walter Scott e de ficções negras sopradas da Inglaterra, se amontoarem no armazém do editor; de o público olhar para os seus esforços literários com indiferença e oferecer êxitos a Victor Hugo e favores a Prosper Mérimée. No entanto Antoinette de Berny, sua primeira amante-mãe entre várias que o seduziram, vencida no leito mas crua a avaliar ligeirezas da sua vida prática, irmã do editor que aceitava com paciência esta nulidade comercial, desabafou numa carta: «São edições que continuam desconhecidas de toda a gente. O meu irmão, que só tinha vendido vinte exemplares, já não conseguia pagar o aluguer do armazém onde eles se acumulavam e estragavam; despachou-os pelo preço do bonito papel que tão caro nos ficou encher de letras.» Consciente do outro escritor que já havia dentro de si e estava prestes, por lucidez própria, a vir à luz sobre as prosas menores de Saint-Aubin, anunciou-o num posfácio: preciso muito de silêncio para tentar fazer ruído, e agora com o meu nome. [...] Balzac — já a impor-se como De Balzac — levantava uma rápida e gigantesca construção literária, um fresco da sociedade do seu tempo que ele olhava pelas virtudes e pelos vícios, escrita à luz de duas verdades eternas (veio a dizê-lo num prefácio a esta obra monumental), a Religião e a Monarquia; mas que pode, apesar deste confessado programa, assumir uma grandeza onde cabe quase tudo e justificar que futuros intelectuais marxistas (György Lukács entre eles) o escolhessem como incomparável exemplo de uma análise aos mecanismos de um sistema económico onde triunfa o egoísmo só aplacado pela exploração do homem pelo homem. Também se estava perante a teia de um complexo sistema de relações. A personagem principal de um romance podia surgir noutro como presença ocasional e fugidia; a compreensão profunda de uma cena podia exigir do leitor memória profunda de outra, pertencente a uma ficção sem relações directas com aquela. Balzac coleccionou estes pontos de cintilação que se respondiam de história a história, e em 1833 reuniu-os nos doze volumes com o título geral de Études de Moeurs au XIXe Siècle; e em 1841 acrescentou-os até aos dezassete que hoje conhecemos por La Comédie Humaine. É de uma carta a Zulma Carraud a maior franqueza perante esta ambição: A minha obra terá de conter todas as figuras e todas as posições sociais, deve representar todos os factos sociais sem que uma situação da vida, ou uma fisionomia, ou um carácter de homem ou mulher, ou uma forma de viver, ou uma profissão lá estejam esquecidos. […] Quase dois séculos fizeram-no exemplo do romancista que soube como nenhum outro observar friamente a sociedade do seu tempo nas verdades visíveis e ocultas (embora Baudelaire tenha querido retocar este juízo opondo-lhe o rótulo mais quente e tumultuoso de «visionário apaixonado»), mas também o acusam de romancista por vezes mal servido pela tendência de exorbitar nas descrições, prejudicando o papel da acção e dos diálogos. Destas polémicas sobra uma certeza que não pode deixar de ser cara a qualquer romancista: fazer crer que o inventado, mesmo estranho, mesmo pouco verosímil, é sempre a verdade; e ter posto estudiosos a descobrir como conseguia fazê-lo. […] Balzac: dezoito anos de monstruosa criação literária, três anos de doloroso declínio; uma imaginação que se levantou alto para os êxitos, e teve momentos menos gloriosos em alguns fracassos. Uma energia: vital e consumida naquela chama que está no incêndio de todas as paixões do mundo. O escritor Balzac, ele próprio construído como personagem de um possível e nunca escrito romance de Balzac. Aníbal Fernandes, excertos de «Apresentação», Ser ou não Ser. ARTIGOS RELACIONADOS
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