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ALQUÍMICO CESARINY
11-12-2014

Depois de Fernando Pessoa, só há que discutir se o nome mais sonante que se segue entre os nossos poetas é o de Herberto Helder ou Cesariny, para cada um a sua verdade talvez seja a melhor resposta nos entretantos, ainda há umas décadas para joeirar. O que é indiscutível é a personalidade cataclísmica, narcísica, borbulhante que Cesariny legou para biógrafos e aficionados do seu estro poético. A versejar foi sempre um mutante, um desconcertante, o mais inesperado dos meteoritos. Tudo experimentou à escala surrealista entre o não senso, o mordaz e o delírio, como muito experimentou na sua aventura pictórica (mas esta uma pálida sombra do que deixou nas letras). O lugar em que viveu um Deus irrequieto como Cesariny desperta sempre a atenção, um tal lugar é de peregrinação pois é o espelho convexo deste habitante especial e por isso se compreenderá como um dos mais insignes fotógrafos do nosso tempo, Duarte Belo, se sentiu atraído por captar a preto e branco essa habitação na rua Basílio Teles, n.º 6, 2.º direito, ali para os lados de Campolide, em Lisboa. E assim nasceu esta edição peculiar de um livro que vai ser uma guloseima inescapável aos amantes da fotografia, aos aficionados de Cesariny e aos colecionadores de livros delicados, irrepetíveis: "Cesariny - Em Casas como Aquela", Sistema Solar, 2014.

José Manuel dos Santos, seu admirador e amigo, é o feliz prefaciador deste álbum, refere com tocante beleza as diferentes casas onde o poeta viveu e como esta, a da rua Basílio Teles, se apresentou no último período de vida do poeta:
"Com a idade e as outras doenças, ele passou a ficar mais em casa. Era aquela a pátria do apátrida. Essa casa era antiga, cheia, decadente, altiva, ultrajada pelo tempo, como ele gostava. Nela, todos os equilíbrios eram instáveis. Nela, tudo era acumulação, adição, sedição, rapto. Era como se a casa tivesse regressado de uma viagem lenta e louca. Entrava-se por portas pintadas pela sua mão longa e estava-se naquele corredor que parecia um túnel (...) O Mário recebia no quarto, deitado ou sentado na cama encostada à parede, debaixo de uma prateleira de livros onde estava o tomo da Lello com a Obra Completa do Bocage. Ele era como um guerreiro no seu leito de campanha. Lembrava as guerras passadas e anunciava as futuras (...) Contava histórias, enterrava vivos e desenterrava mortos. Dizia poemas de cor. Feroz, ria de um riso satânico e salino. Havia nele impudor sagrado, desobediência livre, magnificência herética (...) Nos últimos tempos, quando a morte já o tinha feito entrar na sua sombra, essa casa assombrou-se e passou a ser percorrida pelos vultos de todos os aproveitadores, abusadores, especuladores, aldrabões, vigaristas, mistificadores. Dali, levaram pinturas, desenhos, esculturas, manuscritos, livros, papéis, dinheiro (...) Estas fotografias de Duarte Belo são como um navio de espelhos onde o mundo fechado de Cesariny nos entrega os seus sinais, as suas sombras, as suas solidões, os seus sóis, os seus fantasmas, os seus funâmbulos".

Folheia-se o álbum como território sagrado, onde o vate, trocista, nos contempla nesse imenso adeus que a fotografia cativa como tempo imobilizado: longo corredor com lustre aceso ou apagado, os papéis em fúria, prontos a saltar das estantes, objetos encavalitados, confrontos inóspitos entre mobiliário de torcidos e tremidos e uma modernidade desarrumada, uma iconografia solta, umas vezes íntima, outras vezes apóstata, a câmara avança e retira-se, os ângulos complementam-se, mas as sequências perdem-se, até porque se abrem gavetas, destaca rebotalho, livros antigos maltratados ganham personalidade, marcam presença nessa aparente caótica profusão de coisas e loisas. Está a intimidade do lugar desvelado com Cesariny parodiante, Duarte Belo até parece que lança em primeiro plano um fogo-fátuo. E há o poderoso claro-escuro, os sombreados, as paredes metamorfoseadas em panos de cena. O prefaciador fala em acumulação dentro dessa casa que parecia regressada de uma viagem lenta e louca. É talvez verdade, mas o que o Duarte Belo regista é o grande teatro da vida dos sonhos e perdições, as peças da paixão, os códigos culturais desse nome maior da literatura portuguesa de todos os tempos. Que grandessíssimo álbum, à justa medida desse brincalhão das mais fantasiosas partidas. E também para que não se perca na íntegra o último lugar do gigante Cesariny.

Beja Santos, Jornal de Monchique

http://www.imprensaregional.com.pt/jornaldemonchique/pagina/edicao/2/84/noticia/3969

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