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CARTAS DE MÁRIO CESARINY PARA CRUZEIRO SEIXAS
15-12-2014

Entre 1941 e 1975, Cesariny, um dos nossos gigantes poéticos do século XX enviou uma correspondência afetiva a um dos nomes cimeiros do nosso surrealismo pictórico. Como refere no prefácio Perfecto Cuadrado, nada ou muito pouco nestas cartas tem a ver com a convencional epistolografia. São mais um diário de bordo, o uso e recurso a um confessionário, uma transcendente história de amor e fascínio incomparável; e um roteiro histórico dessa aventura surrealista onde os dois foram cúmplices e almas gémeas. "Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas", Sistema Solar, 2014, é um roteiro de leitura obrigatória para conhecer o poeta, o surrealismo e uma belíssima odisseia amorosa, bem como tomar conhecimento de alguns dos parágrafos mágicos, encantatórios, de Cesariny, no seu crescimento poético. Logo em 1943:

"Amor, porque demos nós
aqueles escassos beijos desapaixonados?
Sim, porque quando sós
permanecemos mudos e afastados?
Ai! Ainda não sabia esses olhos teus
vontade dos meus
assim eloquentes, longínquos de qualquer verdade
naquele cansaço naquela inimiga bondade
de te recusar!

Lembro que esperamos
e a clara manhã demorou

Lembro que culpamos
o sonho que a noite roubou

... Pela tua face minha mão desceu
naquela carícia fugace
em que fui todo eu...".

Em 1944, Cesariny revela-se deslumbrado com Irene Lisboa/João Falco, "o mais extraordinário caso de sensibilidade da poesia portuguesa". Irá equivocar-se ao longo de toda a sua vida, a classificar literatos e pintores, caraterística da sua generosidade. Em 1950, num desses caraterísticos arranques pirotécnicos diz ao amante, amigo e companheiro: "Estou no Porto à espera de poder regressar a Lisboa e de tudo, foi muito, o que se passou, melhor é vivê-lo que contá-lo, melhor é contá-lo que escrevê-lo, melhor é beijar-te a boca de olhos muitos abertos e mãos fixas no espaço e dar-te assim, silêncio grande de denso, as letras do alfabeto - e que tu, por ti mesmo, escrevas as palavras que as reúnam, no chão da areia lisa que te fala de mim". É admirador incondicional de Teixeira Pascoaes, vai até Amarante em puro derriço. Cartas que ao longo dos anos nos falam de outros escritores e amigos como António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa e Mário Henrique Leiria que mais tarde classificará como um traste, não será caso único, irá atirar-se como gato a bofe a Moniz Pereira, acusá-lo-á de rasurar a assinatura de Cruzeiro Seixas e a vender as suas obras como fossem dele. Cruzeiro parte para Luanda, é tempo de correio incandescente, atarefado, cada um a seu modo vive um surpreendente círculo de crescimento, Cesariny louva-o amiúde: "São lindíssimos! É para mim, agora, uma felicidade imensa ter-te a ti e ao Lisboa, os dois como um, pela calada das noites, aos pés da minha cabeceira, em presença e quietude". De premeio, vêm à baila confissões de todo o tipo, incluindo curtos engates. Sentimos a prosa a amadurecer - é outro sinal de uma poesia que avança para os cumes. Os anos passam, estamos em 1963, os ímpetos afetivos não abrandam: "penso em ti todos os dias do mês com muito amor, muita admiração e muito desespero, ou, se é silêncio, é, perdoa outra vez, parecer-te-á ridículo, um silêncio de trabalho". Por vezes seguem originais, uns longos outros curtos, advertências, incitamento a projetos comuns. Se grande parte deste correio é emitido a partir da rua Basílio Teles, a partir de 1964 as cartas serão escritas em França e Londres. Os projetos prosseguem em catadupa. Esteve preso e foi expulso de França, goza de uma bolsa da Gulbenkian. Faz anúncios e desconhece o valor das predições: "Vai por ai expor uma Paula Rego. Vai ver, falar, se puderes. Esta a pintora de que te falava há tempo. Julgo-a abjecionista, na obra e na vida, mas, fora os indícios que vi bons, nada acertei ao certo". Há empregos espúrios, até no jornal O Volante. Em 1970, há uma longa carta sobre a exposição havida em Janeiro de 1949, do Grupo Surrealista de Lisboa, documento importante. Estamos em 1975, as relações azedam: "Responder aos teus insultos... está muito calor esta tarde. E a verdade é que são ou procuram ser insultos porque tu pensas que foram insultos aquilo que te escrevi ultimamente. Não era não são". As confissões em torno do estético e do ético também não descansam. E lá para o fim da correspondência desanca com gosto em José Augusto França. No fim desse ano, acabam as cartas: "Anda aqui confusão. Não nos entendemos. Certamente, ganho em snobismo e ecletismo o que perco em humanidade e generosidade. Coisa inimaginável, eu dos corpos nada reclamo, nada do que ele é to peço nem o pedirei a alguém". Mas acima de tudo, nesta intimidade, neste sombreado de desabafos, glorificações e arrufos, o que mais avulta é a paixão do poeta e o desmedido da sua curiosidade, a fúria do seu génio. Cartas imperdíveis, uma enormíssima aventura de talentos.

 

Beja Santos, Jornal de Monchique

http://www.imprensaregional.com.pt/jornaldemonchique/pagina/edicao/2/84/noticia/4041

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