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CRÓNICAS: IMAGENS PROFÉTICAS E OUTRAS, 4.º VOLUME, DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
29-02-2016
"Crónicas: Imagens Proféticas e Outras", 4º volume, de João Bénard da Costa (Documenta, 2015) é um conjunto mais uma vez notável de crónicas de um dos grandes escritores portugueses do século XX – sobre o tempo que passa, desde a grande paixão do cinema às artes plásticas, passando pelos lugares e pela vida, pelas pessoas e pela amizade.
UM DELEITE PARA O ESPÍRITO
O conjunto das crónicas apresenta-nos um inesgotável manancial de temas e de reflexões. A lembrança da amizade entre Montaigne de La Boétie é um exemplo de uma sensibilidade culta, para quem a citação de Michel de Montaigne sobre a amizade ultrapassa em muito a invocação das palavras do autor da «Apologia de Raimond Sebond». Estamos no centro da dignidade humana e da força das relações interpessoais: «o que normalmente chamamos amigos e amizades não são mais do que hábitos ou conhecimentos provocados por aquesta ou aquela ocasião ou acaso, desses ou dessas que existem para entretenimento das nossas almas. Mas, na amizade de que eu falo, tudo se confunde e mescla numa mistura tão universal que, por completo, apaga a costura que as uniu e da qual não se observa o mais leve rasto. Quando insistem comigo para saber porque é que eu o amava (Montaigne fala de La Boétie), sinto que não o consigo exprimir senão dizendo: Porque era ele; porque era eu». A fórmula, justamente popularizada, põe a tónica na relação de amizade como um desafio pessoal, de dar e de receber – e de singularidade de proximidade. A amizade obriga a essa reciprocidade, a essa confiança, a essa troca, a essa entrega que conduz à feliz síntese que Montaigne nos apresenta, em coerência com as grandes reflexões da humanidade sobre a amizade. O texto que trata deste tema vem ilustrado com um belíssimo rosto da autoria de Roger van der Weyden – e o certo é que a crónica anda à volta do misterioso desaparecimento em Bruxelas de Beata Dubrowska. «Uma rapariga de vinte e poucos anos, se tanto, talvez a mulher mais bela que estes meus olhos viram. Era louríssima, tinha a pele branquíssima e os olhos daquela azul que só o Maître de Moulins ou Rober Campin conseguiram pintar. Uma virgem flamenga como nem mesmo esses a representaram». A crónica relata um encontro, que nada teve de alucinatório porque partilhado por outras pessoas, e um misterioso e incompreensível desaparecimento - «talvez Beata (polaca de nacionalidade) não tenha descido dos céus à terra, na sua mor beleza». Este fugaz encontro e sequente desencontro tem conhecidas referências antigas – Cícero dizia: «o amor é o desejo de alcançar a amizade de quem nos moveu pela beleza»… O espírito obriga a que as relações humanas se componham dessa gratuidade e desse fascínio… O que nos leva ao Espírito, como na belíssima crónica «Noli Me Tangere». Trata-se de um episódio perturbador, relatado por S. João sobre Maria de Magdala: «Jesus disse-lhe: “Mulher, porque choras? Quem procuras?” Julgando que Ele era o Jardineiro, ela respondeu: “Senhor, se foste tu que O levaste, diz-me onde O puseste e eu irei Busca-Lo”. Jesus disse: “Maria.” Ela reconheceu-O e disse-lhe em hebreu: “Rabuni!”, o que quer dizer Mestre. Jesus disse-lhe: “Noli me tangere (não me toques) porque ainda não subi para junto do Pai. Mas vai ter com os Irmãos e diz-lhes que eu subo para o Meu Pai e Vosso Pai, para o Meu Deus e Vosso Deus”». (Jo. VIII.20: 11-17). João Bénard da Costa, com especial agudeza de análise, lembrando que a vibração familiar do Natal foi sempre mais intensa do que na Páscoa, apesar desta representar o momento fundamental do mistério de Cristo, procura dar a chave desta disparidade, a propósito do quadro de Tiziano que representa este episódio: «Se é lícito especular sobre essa representação, o que Tiziano figurou foi um cadáver que ainda não tinha ressuscitado no esplendor da ressurreição da carne e que, por isso, não quis ser tocado na carne ainda submetida ao aguilhão da morte». Este quarto volume reúne crónicas que, para quem as leu em primeira mão, ficaram desde logo marcadas como arrebatadoras. Lembremo-nos de «Morreu-me Teresa Stich-Randall»; «Introito Ad Altare Dei»; «Setembros de Antigamente»; «Arrábida Novamente», «Um dia Claro» e «Em Esperança Salvos Somos». A cada passo encontramos o testemunho de alguém que amava as pessoas e as coisas que tocavam. Ruy Belo diria: «uma casa é a coisa mais séria da vida». Stich-Randall foi a mulher que João mais amou no mundo - «ouvi-a mil vezes e dos anjos quase sempre só a voz foi ouvida». E quanto à liturgia não terá ela introduzido uma certa banalização do sagrado? A invocação dos tempos de férias, torna, por seu lado, a nostalgia algo de reconstituinte da convivialidade. «Agosto e Setembro, na Arrábida (…) eram o que nesta terra mais se aproxima do céu»… «Quem conhece a Arrábida sabe que mais nenhuma se lhe pode assemelhar. Se nela tantas vezes me perdi, sempre foi nela que me achei. Outrora como antes, ou outrora no depois». Carl Th. Dreyer e «Ordet» («A Palavra») é especialmente lembrado pela força sobrenatural de uma obra-prima da arte europeia - «Graças a todos, vivi um dia claro. Agora, mais do que nunca, sei o que isso quer dizer»… Por fim, nesta enumeração aleatória, vem a referência a Bento XVI e à sua encíclica Spe Salvi, que permitiu uma sessão memorável no CNC - «a Esperança permanece a virtude mais misteriosa, aquela que pasma o próprio Deus, com escreveu Charles Péguy»…
Guilherme d'Oliveira Martins, Centro Nacional de Cultura
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