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INSTALAÇÕES PROVISÓRIAS
17-05-2016

Fraturas expostas

 

As transformações que ocorreram nas últimas décadas no campo artístico reposicionaram e reinventaram consideravelmente o perfil dos seus agentes e a hierarquia entre eles. Estas mudanças têm obviamente impacto na leitura da arte contemporânea, na forma como vemos a sua produção, exposição e validação mas também nas prioridades da historiografia, favorecendo o estudo da ordem institucional das artes e os seus movimentos dialéticos.

É nesse contexto que podemos ler «Instalações provisórias - Independência, autonomia, alternativa e informalidade. Artistas e exposições em Portugal no século XX», de Sandra Vieira Jürgens. O livro é também a tese de doutoramento da historiadora e crítica de arte mas não se espere uma obra maçuda. Pelo contrário. Pelo assunto que aborda e pelo conflito que lhe está implícito, «Instalações provisórias» está destinado à polémica, ou pelo menos a parte dele que reporta a última verdadeira grande querela histórica nas artes plásticas portuguesas, ocorrida ao longo dos anos 90.

Jürgens explicita primeiro a orgânica histórica das sucessivas rebeliões contra o sistema institucional, desde o século XIX, em quatro conceitos distintos: independência, autonomia, alternativa e informalidade. Seriam essas as condições a suscitar a tensão entre o campo institucional e as alternativas que ao longo das décadas se foram colocando em oposição a este.

Fazendo depois um zoom direcionado à realidade portuguesa do século XX, a historiadora revisita brevemente alguns dos seus momentos de rutura como o da geração do «Orpheu»; as exposições dos independentes; a conjuntura dos anos 70 e 80, lembrando momentos-chave como a «Alternativa zero», em 1977, ou a exposição do «Depois do modernismo», em 1983, entre outros.

Maior espaço merece a década de 90 (130 páginas) cujas condições analisa e para a qual encontra três case studies de respostas ágeis e alternativas do ponto de vista da produção e apresentação artística (ZDB, WC Container e Caldeira 213). Tão importante como essa tipificação é o retrato histórico e ideológico que a autora faz da luta que ocorre entre a geração dos anos 80, que havia ocupado os lugares de destaque e visibilidade, e a que emergia com os 90, que se sentia bloqueada.

É particularmente informado o rastreio das atividades da geração dos anos 90, bem como a identificação de novos modos de organização e novos atores nesse período (como os espaços alternativos aos museus e ao circuito galerístico mas também as figuras do artista-produtor, do artista-curador ou da curadoria coletiva), ditados pela necessidade mas também por proposições ideológicas.

Esta é uma análise eminentemente sociológica, capaz de relacionar a factualidade política com a artística e de entender relações entre as mudanças económicas e sociais, o fazer artístico e o mercado.

Fica claro que o que se verificou no início dos anos 90 e que se repercutiu em todos os alinhamentos nela gerados foi também um choque ideológico entre a visão individualista, alheia aos clichês culturais da revolução, autorreferencial e dandy, que animara os artistas referenciais da década anterior, e a estratégia coletivista e desierarquizada dos que então se queriam impor. Essa oposição não é imediatamente traduzível em categorias anteriormente muito nítidas como esquerda e direita ou reacionários e progressistas, mas não deixa de espelhar pelo menos dois posicionamentos claramente antagónicos de entender a arte, a sua vocação e enquadramento: um que salvaguarda sobretudo a sua dimensão individual e outro que forçou o alargamento das estratégias produtivas e expositivas das artes. O final da década de 90 e o início da seguinte, mostram sinais de uma evidente transformação no equilíbrio de poderes entre estas distintas convicções. Pense-se nas aquisições do IAC em 1997-99; na programação que Pedro Lapa leva a cabo a partir de 1998 no Museu do Chiado; ou na que Miguel von Hafe Pérez delineou para o Porto 2001; e pode constatar-se que grande parte do que se passou nos anos 90 já estava então perfeitamente integrado.

A primeira década do século XX será muito menos conflitual, refletindo a anterior abertura de campo mas também o esbatimento das posições mais radicalmente anti-institucionais. O seu estudo seria interessante e complementar na revelação dos fluxos e refluxos institucionais, dos quais a análise de Sandra Vieira Jürgens abrange preferencialmente o primeiro momento dialético (em que a instituição recusa a margem e esta gera um contexto alternativo).

Aquilo que é institucional e o que disso se autonomiza a cada passo são condições flutuantes e intermutáveis de acordo com cada momento histórico. Virá o dia de estudar igualmente o que aconteceu nesta década e meia aos agentes e às práticas que então corporizavam as posições antissistémicas dos anos 90. Mas isso é outra tese e outro livro.

 

Celso Martins, in Expresso, Maio 2016

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