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HISTÓRIAS AQUÁTICAS
18-10-2016

Vida aquática

 

Duas décadas de Marinha Mercante ofereceram a Joseph Conrad as experiências nas quais baseou algumas das suas ficções mais conhecidas. O clima de exotismo inquieto e a técnica da narrativa aparecem logo num dos primeiros contos que publicou, «A Laguna» (1897), e mantêm-se nos outros textos coligidos nestas três «Histórias Aquáticas».

O conto mais notável deste volume talvez seja «O Parceiro Secreto» (1910), a odisseia de um capitão que descobre, a bordo do navio que comanda, um indivíduo fugido da justiça. O fugitivo, Leggatt, exercia funções de imediato noutro barco, matou um homem numa desavença, escapou a nado. E consegue que o jovem capitão o esconda, o abrigue e o alimente, até que cheguem a terra e à liberdade. Qual a motivação do capitão? Não sabemos bem, e essa ambiguidade está na origem de uma espantosa tensão. O capitão congemina as manobras mais arriscadas para manter Leggatt na sua camarata, sem nunca percebermos porque se sujeita a tais perigos. Leggatt é parecido com ele, talvez seja isso, ou é o homem que ele gostava de ser, ou então tudo se explica porque o capitão se sente um estranho a bordo, visto que não conhece o navio nem a tripulação. O certo é que ele se refere àquele passageiro clandestino como «o meu eu secreto», «o meu segundo eu», «o parceiro secreto da minha vida». Podemos ler «O Parceiro Secreto» como uma parábola sobre a responsabilidade, um confronto entre o indivíduo e o colectivo, uma variação tardia sobre os «duplos» românticos, uma história de fantasmas, uma hesitação identitária, uma meditação sobre o «eu» dividido, uma aventura trágica. Essa abertura a vários sentidos ajuda a manter a ansiedade, o esconde-esconde, os disfarces, os arrepios, as dúvidas existenciais. A verdade é que o capitão ajuda o fugitivo em contravenção dos códigos, ameaçando até a segurança da embarcação. E depois Conrad inventa um desfecho que faz da prevaricação uma forma de epifania. Como se vive em comunidade quando a subjectividade se intromete? Que angústia é essa que defende um «irmão» desconhecido em desfavor dos camaradas? A força moderníssima, nervosa, destes dilemas, bem como a prosa imaculada, fazem de «O Parceiro Secreto» uma das ficções curtas mais espantosas da língua inglesa. Mas «Mocidade» (1898) não lhe fica atrás. O conto apresenta-nos Charles Marlow, a personagem que também aparece em «O Coração das Trevas» (1899), «Lord Jim» (1900) e «Acaso» (1913). A idade tornou Marlow um homem desiludido e amargo; mas aqui ele conta-nos uma história da sua vivíssima mocidade. Com vinte e poucos anos, Marlow foi segundo-imediato num navio, o «Judea», que transportava carvão para Banguecoque. Os embarcadiços estavam dominados por uma sensação de aventura, de entusiasmo, sensações de juventude, das quais ainda hoje se lembram, nostálgicos. Vibravam com as prometidas «terras de palmeiras e especiarias», hão-de ver verdadeiramente visto o «outro» absoluto que é o indígena, essas «caras escuras, bronzeadas, amarelas», homens pasmados, imóveis, estarrecedores.

Mas não é o que encontram que mais importa, é o que levam consigo. O «Judea» traz uma carga inflamável. E acaba por entrar em combustão em alto mar, um caos de fumos e madeiras, que Conrad descreve de rompante, sem preparação, numa confusão de impressões, e a que regressa depois de forma mais minuciosa: «No meio de trevas de terra e céu ele ardia, altivo sobre um disco de mar de cor púrpura onde se projectava o espectáculo vermelho-sangue das cintilações sobre um disco de água luzidia e sinistra. Uma labareda alta e clara, uma imensa e solitária labareda subia desde o oceano; e, na sua ponta, o fumo negro derramava-se continuamente no céu. Ardia com fúria, imponente e lúgubre como uma pira funerária acesa na noite, rodeada pelo mar, velada pelas estrelas.» A vida aquática, em Conrad, é uma memória vital, mas é também a catástrofe que, às vezes, vem por bem. 

 

Pedro Mexia, in Expresso, Outubro 2016

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