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MESSALINA
23-11-2016

A Carne do Mal

 

Cerca de cinquenta anos após a morte de Messalina, o poeta latino Juvenal concentrava naquela que foi terceira mulher do Imperador Cláudio a sua crítica da degenerescência dos costumes na Roma imperial  —  «Mas conheço o caso de Cláudio, o quase-divino, / Por exemplo: assim que adormecia, Messalina / — Que preferia colchão de palha a leito imperial —  / Escapulia do palácio, augusta rameira, / Com capote e capuz, sozinha ou com uma aia, / Nos cabelos negros uma peruca grisalha, / Rumo ao bordel malcheiroso e abafado, com cela, / Privada e tabuleta à porta  —  Licisca, a Loba — , / Os bicos dos seios pintados de ouro, o ventre / (Que gestou o generoso Britânico) à mostra». O extenso trecho da «Sátira VI» é, não apenas uma tentativa de dar a perceber a qualidade imbatível da tradução de Décio Pignatari (porventura superior à de David Mourão-Ferreira, igualmente engenhosa), mas deixa, igualmente, entrever a forma como Alfred Jarry colheu no labor daquele poeta tanta da sua inspiração  —  a ponto de o citar no primeiro capítulo da sua Messalina. Por vezes, quase em regime verbatim: «Só está vazia uma cela reservada à rainha das abelhas, que a Augusta ali inscrita como Licisa não deixa de fazer lembrar  —  nenhum dos seus cabelos negros é denunciado fora do pequeno capacete de falsas tranças louras com a cor do uniforme das cortesãs  —  agora completamente nua e com ouro nos seios.» (p. 23)

Messalina, figura histórica, presença mítica, personagem, essa, é uma encarnação do mal. Ou do supremo bem, o da mais desbragada carnalidade. Um núcleo reactivo propulsionado pelo desejo. Ou seja, um sujeito da mais assustadora vitalidade. Numa sociedade falocêntrica, ela é o alvo perfeito para a frustração e a captação da benevolência do leitor, auditor, relator. Do pater familias ao marginal, do político ao moralista. À distância das eras, Messalina representa as projecções da História e das artes, dobradas, vincadas e recalcadas, caindo sobre um corpo que apenas se pode imaginar, um espírito que é simples alvo de conjectura, ou distorção historiográfica. Entidade real, ela acumula os enxertos que a passagem do tempo nela foi inserindo. Até ser o fantasma de todos os desejos. A figura mesma do ser que deseja. Toda a perda de rumo e toda a impiedade, a flagrante ausência de decoro, levam-na às formas animais, ao fantasma da carne imaginada e sentida, aos ângulos insinuantes dos objectos, às naturezas díspares e complexas do vórtice sexual.

Alfred Jarry usa de muito perto o texto de Os Doze Césares, de Suetónio, que cita mais de uma vez nos capítulos desta hipnótica narrativa de excesso, luxúria e turbação. Jarry transforma o que, por si só, constituía já, pelo menos em parte, a coscuvilhice histórica de um historiador de génio  —  Suetónio —, para alimentar, com essa problemática matéria de facto, a mais arrebatada fantasia. Mesmo quando não é a letra que se retoma, é o modo, como no «barroquismo» de certas formulações  —  «Mais calma e mais densa, a noite abatia-se entre os muros altos do recinto e os primeiros edifícios da moradia; e o tradicional Cérbero do porteiro, previsto por Cláudio, tinha lá posto pela sua brancura um espectro» (p. 55) O estilo de Messalina é um desfilar orgíaco de brilhos, volumes, texturas e aromas. Um banquete sobrecarregado e faustoso para os sentidos. Toda a escrita desta narrativa é manifestação discursiva de um ambiente epocal e político  —  o do principado do Imperador Cláudio. Alfred Jarry pega nos preconceitos da historiografia  —  Tácito e Suetónio —, que souberam legar-nos uma imagem precisa mas nem sempre fidedigna dos principes, mas também da poesia de Juvenal, um poeta satírico de estro moralista, animado de uma severa pulsão castigadora que ajudou a moldar a imagem contemporânea de, entre outros, Cláudio. Jarry converte esses dados da literatura latina em fantasmagoria. Um ouro fundente que se verte para dentro dos moldes do seu texto.

Em Messalina, é como se as coisas  —  a natureza e o artifício  —  ganhassem corpo, por um «esplêndido horror de prodígio» (p. 64). Como se braços nos tocassem, à distância de épocas distantes (as da Roma Antiga e as dos alvores do séulo XX em que Messalina foi escrito), e os tecidos da sua pela passassem muito perto de nós, como presenças espectrais de uma carne doentia e fascinante  —  «E com uma certeza crescente Messalina compreendeu que devia descer, e o mais precioso lugar do jardim só podia ser aquele onde a escada centrípeta convergia, sem dúvida, para as misteriosas profundezas da fogueira» (id.).

Como sempre sucede nas traduções a cargo de Aníbal Fernandes, este é tanto um livro do seu autor  —  grande génio que antecipou o surrealismo e ajudou a dimensionar a modernidade —, como do seu tradutor. Aníbal Fernades volta a assinar a tradução, mas (de forma nenhuma menos importante) é responsável, ainda, por uma apresentação que ombreia com a obra que apresenta em termos de relevo e pertinência cultural.

 

Hugo Pinto Santos in Caliban, 9/9/2016

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