0,00€
O RISO DE MOZART / O QUE É POESIA? - SOUSA DIAS
28-09-2016

Crítica e poesia para que servem?

 

Intitula-se O Riso de Mozart um novo livro que Sousa Dias publicou. Acompanha-o o seguinte subtítulo: «Música pintura cinema literatura». É, portanto, um livro que reflecte sobre a arte, concluindo com uma abordagem relativa à questão das relações entre a crítica e a arte. Daí a pergunta que é levado a fazer: «Para que serve a crítica da arte?» Todavia, quase no início do livro, aparece o que se diria ser uma resposta. «Criar público». Uma resposta aparentemente simplista, mas que o não é… Poderíamos mesmo dizer que ela é fulcral quanto ao problema da recepção nos nossos dias da poesia e, genericamente, da arte.

Sousa Dias insiste na ideia de que a arte precisa de apostar no «diferente», na «anomalia», de modo que caberia ao artista ser o autor dessa diferença e ao crítico a missão de criar um novo público aberto ao que se tornaria precisamente numa aceitação do «diferente na produção contemporânea». Seria, de acordo com as suas palavras, uma espécie de «revolução permanente».

Mas o apelo à vanguarda talvez traga consigo alguns riscos quando, com o passar dos tempos, tais movimentações se tornam epigonais. Elas apoiam-se geralmente em manifestos e estes enveredam fatalmente para palavras de ordem, palavras essas que no início do século XX, com todo o seu voluntarismo, foram assumidas pelos futuristas, como Marinetti, Maiakovski ou Tristan Tzara. Ora tais ordens podem conduzir ao epigonismo. Pelo contrário, os grandes teorizadores das movimentações românticas, simbolistas ou do modernismo não enveredavam por uma linguagem expedita; havia, neles, uma reflexão de natureza estética, todo um envolvimento teórico como aquele que, no caso do nosso Modernismo, se pode verificar nos apontamentos que Fernando Pessoa nos deixou sobre poesia. Uma teoria, que não é obviamente um poema, abre-se para um número ilimitado de poesias possíveis, o que contrasta com a «furiosa vassoura», como dizia Marinetti no seu manifesto de 1909, com que pretendia empurrar a criação artística para uma opção futurista.

Ora diga-se desde já que a noção de futuro levanta alguns problemas… Ela pode, com efeito, estar relacionada com a do «inactual». Sousa Dias, reportando-se tanto a Nietzsche – autor de uma obra intitulada Considerações Inactuais – como a Giorgio Agamben, considera que o actual não é o presente, o contemporâneo, na medida que perspectiva o próprio futuro: o actual está «depois»… A questão é que para estar «depois» tem que se estar «antes». É esta a ordem (para alguns, a desordem) do tempo em arte.

Sousa Dias, lucidamente, chama a atenção para este facto. Reportando-se, como esclarece, ao «discurso crítico», considera que ele não pode «abstrair-se da história da arte. Pelo contrário. Sem uma clara consciência histórica, histórico-cultural, esse discurso plana no vazio. Sem a presença da memória, a avaliação crítica carece de critérios, de toda a competência». Isto está certo e claramente expresso. Só acrescentaria, ou, melhor, tornaria explícito que noções aqui referidas, como história, cultura ou memória, não deixam de se aplicar também à própria criação artística. E acrescentar-lhes-ia a noção de tradição que, aliás, está implícita na de memória. Já T.S. Eliot, num artigo de 1917 («A tradição e o talento individual»), referia que a tradição devia ser entendida a partir do seu sentido histórico ou transitivo, o que implica, como nos diz, «a presença não só do carácter passado do passado, mas o seu carácter presente». E evoca, logo a seguir, todos os diversos caminhos da literatura depois de Homero, reconhecendo que se o passado é modificado pelo presente este é dirigido pelo passado. As palavras memória, cultura e história (e hoje poderíamos fazer uma referência à noção de intertextualidade) têm que ser entendidas tomando isto em linha de conta.

Dentro deste contexto poderíamos falar em Pós-Modernismo. Sousa Dias refere-se a tais movimentações artísticas e refere-se à «anomia pós-moderna». Ora, no Pós-Modernismo sente-se uma ausência de organização – é isto o que anomia quer dizer – que, pelo desvio a um sentido de construção ou composição artística, compromete aquela ordem do tempo que acabamos de referir. O passado, dentro da sensibilidade pós-moderna, surge apenas como citação, como um vestígio mais ou menos arqueológico ou, se se preferir, revivalista. Sobretudo em poesia, há um certo pendor que leva autores pós-modernos a valorizar talvez excessivamente a subjectividade, criando um imediatismo que compromete o tal sentido de construção a que Pessoa, entre outros, soube dar um especial destaque.

Foi num outro livro intitulado O que é Poesia?, o qual em 2.ª edição apareceu há relativamente pouco tempo, que Sousa Dias nos apresentou um novo texto que de certo modo se relaciona com questões que foram aqui apontadas. «A metáfora para lá da metáfora» é o título desse texto. Desde logo é aí posto em questão o entendimento da linguagem poética enquanto sistema de signos social ou historicamente estabilizados ao longo do tempo. Estaríamos, se assim fosse, perante metáfora mortas, catacreses. Daí a preferência em substituir a noção de metáfora pela de metamorfose, o que a desviaria, segundo Sousa Dias, para uma dimensão ontológica. Isto fazia com que a metáfora estivesse «para lá»… É desenvolvida, então, a noção de «mundo-linguagem». Deste modo a linguagem poética estaria também para além de uma linguagem sociabilizada; reportar-se-ia, antes, a uma experiência humana do ser. Dir-nos-á: «Não há mundo senão como mundo-linguagem, como efeito “poético” da linguagem».

Não será – pergunta-se agora – através dessa experiência humana que, referindo-se ao mundo-linguagem, nele encontra um impessoal cursor de natureza cultural e histórica que faz com que o passado se torne legível pelo presente, de modo que o presente venha conferir-lhe aquele tempo que o torna actual?

Estamos em face de dois livros que são extremamente sugestivos e teoricamente produtivos pelas questões que levantam, as quais se alargam muito para além do problema que foi nesta crónica considerado. Enumeremos alguns deles: o sentido da figuração em arte e o modo como a abstracção pode tornar-se na própria realidade artística, o papel desempenhado pela imagem na poesia e no cinema, o problema do vitalismo em arte, a crítica oportuníssima à «banalidade audiovisual», à cultura massificada e mediática dos nossos dias. O Riso de Mozart termina assim: «Esta sistemática ocultação do pensamento e da criação […] em nome do actual (do que interessa ao público) como regime perverso da crítica instalada, está para durar». Uma boa denúncia, um mau augúrio…

 

Fernando Guimarães in Jornal de Letras, 28-09-2016

RECEBA AS NOVIDADES!
SUBSCREVA A NEWSLETTER E ESTEJA SEMPRE A PAR DE NOVIDADES E PROMOÇÕES
REDES SOCIAIS
© 2014. Sistema Solar. Todos os Direitos são reservados - Política de Privacidade | Livro de Reclamações Digital
design bin?rio