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«Muitos pedem aos deuses; outros, pedem aos amigos», por Beja Santos
29-11-2017

“A correspondência trocada durante 36 anos entre Mário Cesariny, a minha mulher Frida e eu próprio, da qual se reproduzem neste livro as cartas do Mário, dá testemunho da profunda amizade que nos uniu e, é preciso dizê-lo, revela apenas uma pequena parte da história”. Assim escreve no posfácio um dos implicados na trama epistolográfica que constitui um espantoso e (a partir de agora) indispensável testemunho do movimento surrealista português e da atividade de Mário Cesariny na cena internacional: Um Rio à Beira do Rio — Cartas para Frida e Laurens Vancrevel, por Mário Cesariny, Sistema Solar, 2017.

 

Tudo começou quando o livro A Intervenção Surrealista, obra de Cesariny sobre o surrealismo em Portugal, foi casualmente parar às mãos do poeta holandês Laurens Vancrevel, em 1969. Desconhecedor do fenómeno, Vancrevel escreve uma carta a Cesariny, é o início de uma longa correspondência, pois estende-se até 2001. Frida De Jong entra no mundo afetivo de Cesariny, a mulher do poeta estudava Língua e Literatura da Irlanda Medieval, encontram-se em 1970, eclode uma estima profunda, procede-se em permanência em intercâmbios, envio de textos, colaboração em eventos internacionais, Cesariny não é peco a pedir catálogos, livros, traduções e daí numa das suas cartas ter dito ao casal: “Muitos pedem aos deuses; outros, pedem aos amigos”.

 

Maria Etelvina Santos, a quem coube a organização de toda esta correspondência em português recorda que Cesariny manteve relações perduráveis com Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, era um profundo admirador da pintora e amigo sincero do casal. A relação com o par holandês situa-se noutro patamar: “Para além da constante troca de afinidades, de relações de trabalho, de interesses que convergem e de tomadas de posições afins, a relação forte entre Cesariny e o casal Vancrevel está presente na partilha que a linguagem utilizada deixa entrever. Cesariny usa expressões de uma enorme gentileza, como 'Frida La Belle' ou 'Laurens Le Poète'”.

 

A todos os títulos, este precioso documento epistolar abre novas portas ao estudo da personalidade de Cesariny e à sua inserção no surrealismo europeu e americano. Arranca a desembestar nos primeiros surrealistas e o seu bombo de festa é sempre José Augusto França, trata-os abaixo de cão e diz que o culpado daquilo tudo é António Pedro, escreve detalhadamente a precisar o que separa as duas escolas surrealistas em Portugal. Envia-lhe textos sobre Vieira da Silva, com as devidas emendas, recortes de jornais, manifesta entusiamo pela vInda do casal a Lisboa, dá-lhes conhecimento de cópias de cartas enviadas a outros, dá explicações sobre a sua obra poética e pictórica, confidencia o que o aproxima e simultaneamente o afasta dos surrealistas franceses, o nome de Cruzeiro Seixas surge na correspondência até que anos mais tarde haverá rutura onde houvera uma pública afetuosidade, Seixas, à semelhança dos surrealistas da primeira escola, é tratado com profundo desprezo, ridicularizado; fala-se dedicadamente de faltas de dinheiro, sobretudo depois do 25 de Abril; a poesia de Breyten BreytenBach é incensada, quando Snu Abecassis lhe pede a publicação em português de uma antologia poética deste bardo sul-africano que escrevia também em africâner, o casal holandês é muito solicitado para interpretações...

 

Correspondência com intimidades, comentários chocarreiros e, mais tarde, o anúncio da doença. Distingue o poeta do artista e pronta passa à linha da amizade, como se lê numa carta de 1991 para o casal: “Fico feliz por escreveres que os meus quadros, que têm aí em casa, vos fazem companhia. Mas eu não sou os meus quadros. É engraçado que, se em certo sentido posso dizer (ou sentir) que ‘sou os meus poemas’, com os quadros é completamente diferente. Não, não sou nem essas figuras nem essa matéria. Essa coisa. Nem pensar. Por que razão é assim, ignoro”.

 

Conversarão ao telefone pela última vez em 8 de Outubro de 2006, depois de terem visitado em Famalicão o centro de estudos surrealistas e de ter assistido a uma exposição de um amigo comum, Raúl Perez. Cesariny falecerá no mês seguinte. A leitura do posfácio de Laurens Vancrevel é um documento emocionante e um dos mais belos testemunhos que se produziram sobre este génio que convivia na exploração na linguagem e nas formas, e que é hoje percebido como um dos maiores vultos poéticos, ali à sombra de Pessoa. Ler esta correspondência com arranques de raiva, humor finíssimo, cheia de pedidos, de suspiros, e onde se fala permanentemente da saudade do encontro que demora, é descobrir uma espantosa e duradoura relação de amor, é uma surpreendente janela de oportunidade imprevista para o estudo de Cesariny e do surrealismo português.

 

De leitura obrigatória.

 

Beja Santos

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