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«Decorativo, apenas? As artes decorativas na sociedade de consumo», por Beja Santos
10-01-2018

Na década de 1950 manifestaram-se os primeiros sinais do que se pode titular por uma sociedade de consumo à portuguesa. O pós-guerra gerou meios para que o Estado Novo expandisse as suas classes de apoio e satisfizesse expetativas até então diferidas: cresceram bairros sociais e rasgaram-se avenidas; autorizaram-se indústrias mesmo num ambiente de condicionalismo; expandiram-se os serviços, melhorou-se o sistema educativo, cresceu o entretenimento, as multinacionais da comida e da higiene e limpeza fizeram a sua aparição, começou a lenta sangria das migrações do interior para o litoral, o fado perdeu importância a favor do cançonetismo e do ié-ié. No mesmo edifício do cinema e teatro Monumental contracenaram, em momentos diferentes, Laura Alves e Johnny Hallyday. Se já havia a fotografia, a rádio, o cinema e o telefone, chegou a televisão, criaram-se editoras, aumentou o número de grandes costureiras, surgiu o consumo de massas, e as massas passaram a suspirar para ter acesso à arte, passou a haver dinheiro para desejar ter casas decoradas com novos símbolos artísticos. O artista mudou de look, já não se vivia no tempo de Columbano e da sua clientela, o artista passou a fazer capas de livros e ilustrações de revistas, envolveu-se em novos projetos de publicações como a Almanaque, entrou em projetos com arquitetos, caso de Conceição Silva em cujo ateliê trabalharam artistas que se envolviam em projetos decorativos de hotéis, nasceram projetos de arte para as massas, a gravura como múltiplo que permitia, a preços módicos, ter emoldurado em casa Sá Nogueira, Alice Jorge, Hogan, Almada Negreiros, Júlio Resende ou Júlio Pomar.

“Decorativo, apenas? Júlio Pomar e Integração das Artes”, Documenta, Sistema Solar, 2016, é uma importantíssima obra que decorre de uma exposição que teve lugar no ateliê museu Júlio Pomar, onde se reuniu, pela primeira vez, parte das artes ditas “decorativas” produzidas por Júlio Pomar nas décadas de 1940, 50 e 60, sobretudo. Pomar é seguramente o artista mais “completo” que atravessou a vida cultural portuguesa nos últimos 70 anos, é incomensurável o seu número de experiências em cerâmicas, vidros, tapeçarias, baixos-relevos, isto para já não falar do sabor em que se movimentou em múltiplas tendências artísticas a partir do neorrealismo. Na caraterização de Pomar o objeto utilitário, funcional, ao ser dissociado desse papel pode ganhar um valor artístico, mas ele di-lo doutra maneira e numa leitura intemporal: “Uma jarra de vidro, uma cesta de palha, um vestido rústico de musselina, uma bandeja de madeira: objetos belos, não apesar da sua utilidade, mas por causa dela. A sua beleza é-lhes inerente, como o perfume ou a cor das flores. É inseparável da sua função: são coisas belas porque são coisas úteis”.

Retornemos à matriz da sociedade de consumo, aos prédios da Avenida de Roma com escultura, às salas de cinema com frescos, tal como na entrada das escolas, das universidades ou dos laboratórios. Nesses anos 1950 investia-se no azulejo decorativo, na cerâmica, um escultor como Jorge Vieira tinha uma peça à porta do estabelecimento da Madame Campos, uma conceituada fabricante de cosméticos. Chegara-se ao modernismo, ao surrealismo, à arte abstrata, rompia-se com os cânones formais do Estado Novo, o artista plástico envolvia-se em iniciativas com os arquitetos modernistas, percorra-se a Avenida Infante Santo e veja-se a azulejaria de artistas como Carlos Botelho, Sá Nogueira ou Júlio Pomar. Era uma nova abordagem da cidade que abrangia cafés, snacks, e muito mais.

Catarina Rosendo, curadora da exposição, descreve esta aventura modernista das artes plásticas nesta dita sociedade de consumo e fala-nos dos primorosos trabalhos de Júlio Pomar em azulejos, a estação do metropolitano do Alto dos Moinhos, altos-relevos e esculturas em cimento patinado para o Mercado da Pontinha, os vitrais para a Igreja da Sagrada Família, o snack-bar Pique-Nique, os institutos de beleza Frineia e Ayer, lembra que foi na garagem da moradia de Manuel Torres que funcionou a primeira sede e se prensou a primeira gravura da Cooperativa Gravura, e deixa bem claro quem era a clientela deste novo mundo quando Portugal se apressava a entrar na industrialização, no turismo e na cornucópia dos serviços, e quais os problemas que se põe hoje à investigação e conservação deste valioso acervo patrimonial:

 

“Em grande parte, as vias de escoamento das produções cerâmicas dos artistas deste período fez-se por uma rede de pessoas que, sendo consumidoras atentas ao que de mais inovador se produzia em Portugal, estavam também elas envolvidas na transformação dos gostos e da cultura material e na exploração de alternativas atualizadas aos modelos vivenciais impostos pelo regime. Alguns desses objetos circulam hoje por um conjunto de colecionadores especialmente interessados nas artes decorativas dos modernismos portugueses e no levantamento das histórias e percursos dos seus exemplares e autores. Apenas em raros casos alguns destes objetos ingressaram já em coleções museológicas e institucionais, e se alguns dos atuais herdeiros conservam as memórias dos seus progenitores e possuem as competências e os recursos necessários para a preservação e valorização dos espólios que lhes calharam em sorte, outros haverá cujas memórias familiares serão mais difusas e em que o desconhecimento sobre a autoria e o valor patrimonial dos objetos que possuem é a realidade. Para estes casos, não existe ainda uma estrutura de suporte, especificamente de âmbito museológico e tirando a ação muito circunscrita do Museu Nacional do Azulejo, que fomente ações de investigação do que existe no campo das artes decorativas da geração de artistas dos anos 1940-50”.

 

“Decorativo, apenas?” é um documento de grande beleza gráfica, um testemunho do génio de Júlio Pomar, o mais plástico dos nossos artistas plásticos.

 

Beja Santos

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