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«A heroína, o totalitarismo, o delírio entre guerras: Um espantoso talento literário que temos esquecido, Drieu la Rochelle», por Beja Santos
08-02-2018

A obra chama-se O Fogo-Fátuo, o seu autor é Drieu la Rochelle, Sistema Solar, 2016, e é impossível esquecer quem a apresenta e traduz, Aníbal Fernandes, ele dá ao leitor indispensáveis chaves explicativas. Drieu la Rochelle tomou como referência para esta obra Jacques Rigaut, alguém que devia pertencer aquilo que hoje chamamos a socialite e que chegou a ser escritor, a imagem da capa é uma fotografia de um génio, Man Ray. Escreve o apresentador: “Foi um jovem belo e arredio às vulgares maneiras de ganhar a vida, um preguiçoso e um incapaz na sedução de homens, de mulheres ricas que lhe cobiçavam o corpo mas o abandonavam desiludidas com fracassos nos supremos momentos do amor. Drogou-se e desintoxicou-se numa sucessão de internamentos que o não faziam esquecer os belos instantes ornamentados pelas perceções da heroína”. Foi este o filão explorado por Drieu la Rochelle, são textos que começam em 1921, este O Fogo-Fátuo é de 1931 e há mesmo um texto póstumo de 1963.

 

Drieu, que começou por se fascinar pelo comunismo e que se devotou mais tarde pela ideologia de Hitler, sentiu neste Jacques Rigaut a atração de se ver desfocado ao espelho, até mesmo na prática do suicídio, é ver no outro um sem-número de variações sobre a sua própria vida, tudo excessivo, desmedido e descontrolado. Drieu la Rochelle combateu na I Guerra Mundial, foi ferido e escreveu extasiados poemas de guerra. Simpatizou com o comunismo mas será no fascismo que encontrará a sua âncora, tornou-se um colaborador dos invasores, com a derrota do nazismo pressentiu que tinha pela frente o fuzilamento, pouco antes de a guerra acabar tomou medicamentos e abriu o gás, assim se pôs termo à sua flutuação entre dois polos.

 

O Fogo-Fátuo imagina Jacques Rigaut nos seus últimos dias de vida, encontra pessoas que pretendem ajudá-lo, ele prossegue absorto e indiferente, não resiste à heroína, é um ser incapaz de amar e de se fazer amar, é uma luta entre Jacob e o anjo, há vozes que lhe procuram dar apego à vida, mas tudo lhe é insuportável, tal a dimensão da luta que trava com os seus demónios, ele deixa-se conduzir para o precipício. E o mais emocionante é o confronto que Drieu exige ao leitor entre um drogado infeliz que deambula entre relações efémeras, há mulheres que até lhe pagam companhia, nada lhe traz uma razão de ser, é uma narrativa em que o leitor se apega a uma forma de pesar por quem não consegue abrir a porta da redenção.

 

Atenda-se ao esplêndido recorte literário que é a trama que se desenvolve na casa de repouso, é nesse espaço que está a última réstia de esperança na desintoxicação e na descoberta de uma vida para ter projetos, tudo vai falhar, o seu cansaço é infindável, já não há capacidade para lutar, então lança-se na embriaguez da noite, após um confronto de ideias com o seu médico, o dissoluto apressa-se a caminhar para o patíbulo, é uma prosa efervescente, turbilhonante, o desiludido rememora o seu passado. Bate à porta de um amigo, entra numa estranhíssima reunião, está cercado de gente tão problemática e quase tão abandonada quanto ele, aquele amigo repete a tentativa do médico de o trazer à vida, conversa inconcussa, vão até uma exposição, repetem-se as cenas mundanas de uma admirável frieza. Na exposição encontra uma mulher e partem para uma experiência de droga, depois é a viagem pelos bailes, segue-se a vontade de ver gente, entramos numa nova tertúlia surrealista. Drieu entra no jogo como se perguntasse diretamente a razão pela qual o seu anti-herói prosseguia o desvario: “O que levaria Alain a continuar? Não tinha visto o suficiente? E, se queria matar-se, que melhor hora há do que as sete ou oito da noite, quando todos os desejos são soltos do trabalho e lançam-se a toda a velocidade, fazendo um enlouquecedor torvelinho através da cidade? Mas não; a vida só é hábito, e o hábito apodera-se de nós tanto tempo como se apodera da vida”. Entrementes, Drieu pincela quem vai entrando em cena, é muito breve, tão breve quanto a viagem fantástica daquele Alain que vai cortando as amarras. Veja-se o que ele diz de alguém que se chama Brancion: “Brancion tinha uma cara de herói: com a tez levada à cor de chumbo pela febre e os dentes esmigalhados por um qualquer acidente brutal. Roubara e matara, mas olhava-se com muita consideração para este homem porque o tinha feito sozinho, e isso não era habitual nos senhores da nossa época”.

 

Mais encontros e depois o caminhar pela rua fora, combina almoços onde não estará presente. Volta para a residência onde procurou desintoxicar-se, sente que atingiu o termo da viagem. E é uma descrição sóbria e cortante que remata esta maratona de desilusão: “Bem aconchegado, com a nuca na pilha dos travesseiros, os pés na armação da cama, o corpo bem posto em arco. O peito nu projetado para a frente e bem à mostra. Toda a gente sabe onde fica o coração. Um revólver é sólido, é de aço. É um objeto. Confrontarmo-nos por fim com o objeto”.

 

Não há ideologia nesta narrativa, ela passa-se num contexto de depressão, que correspondia à realidade, a crise de 1929 tomava conta da Europa, musculava as doutrinas, e enquanto se perfilavam ditaduras e se desconfiava da democracia largos estratos das classes médias entregavam-se à indiferença, à vertigem, ao fogo-fátuo, aqui tão primorosamente descrito, comprovando que é preciso redescobrir este grande talento da literatura francesa que teve a sua estrela nos anos 1930.

 

Beja Santos

 

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