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«Nota sobre "Do Tirar pelo Natural"», por Tomás Maia
10-03-2019

para a Lea

 

No amor, pede-se a alguém para que nos tire de nós mesmos.

No ensino da arte é diferente, não muito, mas um pouco diferente.

Encontra-se alguém que nos tira — ou nos ajuda a tirar — o nosso próprio dom de criar. Sem esse encontro, não há exactamente arte. O resto é história de arte.

(Sem dúvida, pode escrever-se e pensar-se a história desses encontros — mas é então, precisamente, que a história de arte se torna criadora porque ela é a narrativa do que, não tendo apenas «interesse histórico», fez e faz literalmente história.)

 

*

Um tal encontro exprime a realidade e a necessidade do ensino (quer dizer, da transmissão) da arte. Embora não se possa transmitir o dom de criar (porque ele é inato), dão-se exemplos de obras — com os quais, somente, se pode fazer despertar um dom. Aquele que ensina não precisa de ser um criador (de obras), mas tem de saber dar o exemplo, em todos os sentidos desta expressão. Talvez uma frase (suspendendo por uns segundos a ideia de sacrifício no Ocidente, se é que isso é possível — e não há nada de mais incerto), talvez uma frase de Padre António Vieira possa condensar essa ideia de ensino (que tentarei desenvolver noutro lugar):

 

Há homens que são como as velas; sacrificam-se, queimando-se para dar luz aos outros.

 

*

A proximidade (a vertiginosa e até mesmo perigosa proximidade) entre a arte, o ensino da arte e o amor termina aqui. Demoremo-nos então por um instante em duas diferenças. Quando o amor dá filhos, estes não são propriamente obras de arte; aliás, nem é requerido que o amor dê essa espécie de frutos. A arte, em contrapartida, dá necessariamente obras. Depois — e é uma segunda diferença — a obra, contrariamente a um filho, nunca morre de morte natural, pelo menos se seguirmos a ideia de obra que o Ocidente se fez. Pela simples razão que ela mesma, a obra, se define como uma certa tiragem da natureza.

Tal foi o motivo do meu primeiro espanto quando comecei a ler o tratado de Francisco de Holanda. (Em rigor, mas isso requeria toda uma outra leitura de Francisco de Holanda, à qual apenas posso aludir aqui: o meu primeiro espanto foi a redescoberta dessa língua inaudita em que ele escreve, medita e cria, a ponto de, por momentos, eu duvidar se não estava a ouvir uma certa invocação da graça feminina que se lê na lírica camoniana, não esquecendo um certo culto do oximoro que lhe é peculiar.)

Mas o espanto que me possibilitou escrever reside no facto de Do Tirar pelo Natural, não deixando de ser um tratado renascentista (sendo mesmo, importa repeti-lo aqui, o primeiro tratado europeu exclusivamente dedicado ao retrato), no facto de esse tratado enunciar algo de trans-histórico, por um lado, e de transversal a qualquer género ou expressão artística, por outro. Esse algo é precisamente o gesto de «tirar pelo natural» (que dá o título ao tratado).

Mas tirar pelo ou do natural o quê?

[…]

Tomás Maia

 

Texto foi lido na apresentação do tratado de Francisco de Holanda, Do Tirar pelo Natural (Lisboa, Documenta, 2019),

na livraria Sistema Solar (Chiado) a 1 de Março de 2019. 

Versão integral disponível no bogue da Sistema Solar,

http://blogue-documenta.blogspot.com/ (publicação de 6 de Março de 2019).

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