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«Separação infinita — continuação de cena», por Rodrigo Silva
02-02-2021

«As mãos da gruta Chauvet produzem toda uma outra lição de trevas, porque é aí que o homem reencontra a sua noite, cria a sua claridade e desdobra a sua capacidade nascente de manter com o mundo uma relação constituinte e separada. [...] Nas grutas, trata-se da economia da separação dos vivos com o primeiro sítio que lhes deu a vida, separação que faz aceder o infans à palavra.» 

Marie-José Mondzain

 

«Um encontro não é senão o começo da separação.» 

Provérbio Japonês

 

«O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.» 

Clarice Lispector

 

 

1. Nunca soubemos o que foram os começos. Achámo-nos sempre já começados, avançados num tempo sem princípio nem fim, herdeiros involuntários de múltiplas histórias e tempos entrelaçados, cruzados, inapelavelmente compósitos, no meio do diverso e do múltiplo. Estamos sempre a começar e a recomeçar, a procurar novos começos, mas a origem esteve sempre já perdida, mesmo quando a sonhámos como dada para sempre num tempo primeiro, mitificado, num outrora claro e distinto. Mas das origens resta-nos uma bruma, fascinante e indistinta, que julgamos sempre ainda poder vir a reencontrar em certos gestos arriscados, imagens (entre)vistas, alguns fragmentos apagados, algumas palavras perdidas. Não as palavras da tribo, mas as palavras do abismo, do murmúrio, do segredo.

2. Emergimos, tacteando, do inseparado e do indistinto. Como em tudo, na expressão das formas vivas e nas coisas do espírito, o movimento vai do simples ao diferenciado, do unido a si para o uno diferindo de si, declinando-se em inúmeras especificidades, singularizações, metamorfoses incontáveis. Esse movimento parece ser também o movimento das culturas e das civilizações constituídas: sinais ténues, indícios terrestres, que testemunham da emergência do novo e de um começo, que nos permitem projectar um surgimento primeiro e inteiro, como se assistíssemos ao nascimento do inaudito. Do simples para o diferenciado: terá sido assim a emergência de cada uma das actividades humanas, as que testemunham da vida do espírito. Gestos simples e inteiros, lançados de uma obscuridade nativa, que se vão mostrando e reconhecendo com novos nomes e tonalidades, identificados e decididos na sua separação e divisão. Assim emergem os modos do fazer e do saber que dão forma ao colectivo e ao viver-em-conjunto: política, arte, religião, sagrado, nomes gregos e latinos, não o esqueçamos nunca, nomes ausentes na língua chinesa e do sânscrito, nomes inidentificáveis nas múltiplas línguas ameríndias e nos povos autóctones, a quem chamamos também «povos primeiros». «Arte», «Política», «Religião» são os velhos nomes migrantes de Atenas e Jerusalém, na princesa Europa, jovem idosa, atravessada por cicatrizes, divisões, separações múltiplas. «Arte», «Política» são os nomes da separação infinita dos gestos simples e inteiros do começo inseparado, com que julgamos reconhecer os gestos do fazer e do saber: os gestos da separação interminável daquilo que nasceu junto e unido, emergindo do inseparado e do indistinto.

3. Se a arte e a política são nomes gregos e latinos é porque são esses os nomes mais próprios da «nossa história», das separações internas e intermináveis que a nossa história não cessa de disjuntar e desunir. Mesmo se, sabemo-lo, arte e política hoje são os nomes, urbi et orbi, que se tornaram parte do mundo globalizado da geopolítica e da circulação imparável das mercadorias, do tecno-mundo e das suas ciberesferas. Dizer «a nossa história», é dizer também a história imperialista, colonizadora do Ocidente, dos seus projectos e projecções, que tantas vezes nós Ocidentais e Europeus tomamos como a história-mundo de um planeta que afinal é feito de tantas histórias e outras tantas modernidades, tantas alter-histórias e humanidades-outras, tantas artes, tantas políticas, quantos os lugares, quantas línguas para os falarem. Essa história que se pensou consciente de si e como movimento da autoconsciência da humanidade, que obliterou os plurais das histórias, que se quis centrípeta e se imaginou hegemónica como se tudo convergisse para o centro hipnótico das suas narrativas e categorias, essa história, é aquela que disjuntou aquilo que emergiu junto, puro surgimento indistinto. Quero por isso dizer que esta conjunção do que está disjunto, este face a face de dois distintos — e que em alguns destes textos se afirma como essencial separar — é uma operação interminável: a da separação infinita, daquilo que não cessa de se separar, como duas coisas que emergem distintas do inseparado.

[…]

Rodrigo Silva

 

Ler o texto completo

http://blogue-documenta.blogspot.com/2021/02/separacao-infinita-continuacao-de-cena.html 

Ver a apresentação de Persistência da Obra I — Arte e Política e Persistência da Obra II — Arte e Religião

https://www.youtube.com/watch?v=9BuVFZHofpI

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