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Gérard de Nerval

[…] nasceu em Paris no ano 1808, e aos quarenta e sete anos de idade foi encontrado morto por enforcamento numa trave da rua de La Vieille-Lanterne, mal afamada, diz-se, e hoje sem nenhum rasto na urbanização que rodeia a torre de Saint-Jacques; pendurou-se em coordenadas da cidade que pertencem agora a um qualquer recanto do teatro Sarah Bernhardt.

Gérard de Nerval, na realidade Gérard Labrunie, inventou para si e para o público um Nerval de sílabas que bem se casam com o estado de nervos psicótico que o dominou e determinou nalguns momentos célebres da sua literatura. Órfão de mãe a partir dos dois anos de idade e com um pai médico militar obrigado a exigências profissionais que o impediam de olhar pelo seu filho, foi uma criança destituída desde a primeira infância de uma qualquer figura a que pudesse chamar materna ou paterna, e encontrou a sua tutela emocional num tio-avô que o fez herdeiro de trinta mil francos (recompensa do seu amor de quase-pai) — desbaratados, diga-se desde já, em folganças de dois anos num Paris vivido à larga e a pagar as páginas luxuosas da revista Le Monde Dramatique, inspiradora de gastos perdulários que as suas poucas vendas mal agradeceram.

Mas até à plena vivência destes momentos, desde muito cedo mostrou que seria escritor. Não foi surpresa, para quem o sentia de perto, ver o seu nome impresso nas páginas de um jornalismo parisiense mais ou menos lateral, anunciado no sítio do autor em peças de teatro (que nunca entusiasmaram excessivamente o bulevar, mesmo nas duas vezes em que colaborou com Alexandre Dumas), e depois como autor de contos e novelas; tudo contra as insistências do seu pai (com quem tinha passado a viver depois de ele estar reformado) que em sonhos de médico velho se via profissionalmente prolongado por um filho e o forçou (por pouco tempo) a sentar-se e a afogar-se em tédios de corpo e alma nos frios e lustrosos bancos da Sorbonne.

Gérard de Nerval gostava muito mais do convívio com intelectuais e dos salões que eles frequentavam. Era visto no círculo de Pétrus Borel, era íntimo de Théophile Gautier e Jules Janin, conversava com Victor Hugo e ouvia com atenção Baudelaire. E também sabia a par destas tertúlias apaixonar-se e ser nas paixões infeliz; por isso amou perdidamente a actriz Jenny Colon, casada, que lhe não deu nesse amor grandes êxitos — mas fez dela a futura Aurélia da novela publicada com este nome no título; por isso amou com fraca retribuição Sophie Darves, amazona fogosa que morreu numa cavalgada imprudente — e ele transformou na Sylvie que é uma das suas Filhas do Fogo.

Em 1841 teve uma primeira crise de loucura. Começou a ver o que os outros não viam, a ouvir o que os outros não ouviam; foi forçado a sujeitar-se a um período de internamento numa clínica, e saiu de lá num estado de palavras que não mereceu muita confiança àqueles que o rodeavam. Os seus amigos olharam-no como um «incurável», e ele quis dar-lhes prova da sua sanidade mental fazendo uma viagem ao Oriente e extraindo dela matéria literária para um livro que o mostraria ao mundo em plena posse das suas capacidades intelectuais. Conseguiu, podemos com isto espantar-nos, de jornais e ao que parece de um editor, subsídios que o levaram ao Cairo, ao Líbano, à Síria e a Constantinopla. «Não sou doido», afirmava para estabelecer o que só era um especioso matiz, «tenho apenas teomanias». Numa carta desta época lamenta-se: «Quase todos […] estiveram de acordo em falar de mim como de uma espécie de profeta, de iluminado, com a razão perdida por me ter sujeitado na Alemanha a rituais de sociedades secretas e ter estudado os símbolos do Oriente. […] Desde aí os meus amigos […] continuam a chorar a minha razão perdida. […] E em vão falo, argumento, e até escrevo.» E numa outra, endereçada ao seu pai em Agosto de 1843: «Nem o mar, nem o calor, nem o deserto conseguiram interromper esta bela saúde que os meus amigos punham em causa antes da minha partida. Esta viagem servir-me-á sempre para demonstrar que fui há dois anos vítima de um acidente muito isolado. […] Faço esquecer a doença com uma viagem; instruí-me, cheguei mesmo a divertir- -me, isto fez-me bem no que respeita ao estado da minha saúde.»

As memórias orientais de Nerval preencheram um relato que em sete anos de trabalho acabou por ocupar várias centenas de páginas e veio a chamar-se Voyage en Orient. E o discurso ali oferecido, sempre a um passo do romance, percorreu realidades subtilmente transformadas pela imaginação ou pelos seus sonhos de poeta. Reconheceu-o ele próprio assim: «é a criação de um universo fechado e consumado que a si próprio se basta, mais verdadeiro do que a realidade quotidiana, mais vivo do que a vida, ainda que diferente dela.»

Nas páginas desta volumosa obra intercala-se uma novela a que chamaremos Balkis; que assume um valor literário independente e nos é dada a conhecer através das palavras de um profissional contador de histórias. (Antes de ser publicada no extenso livro Voyage en Orient (1851), surgiu em 1850 nos números de Março a Maio da revista Le National.) Nerval pretende fazer-nos crer que a escutou ao longo de duas semanas de Ramadão num café de Constantinopla, e que assim soube da estranha relação entre Salomão e Balkis, construída e imaginada a partir de textos centrais e menos centrais das tradições cristãs e muçulmanas.

[…]

Foi este Gérard de Nerval ameaçado pela fome, com a indiferença dos seus amigos, num pleno vazio de sentimentos de amizade, frequentado por «teomanias» cada vez mais persistentes, pela realidade fictícia das suas próprias invenções, que na muito fria noite de 25 para 26 de Janeiro de 1855 se dirigiu à rua de La Vieille-Lanterne e bateu tardiamente à porta de uma casa de passe para pedir abrigo. A sua gerente, já desembaraçada dos últimos clientes, já com as suas pupilas a dormir, recusou-se a atendê-lo.

Nerval seguiu então o conselho supremo do seu desespero. Havia ali a dois passos a convidativa trave horizontal de um gradeamento, à frente da parede onde costumava grasnar «o corvo da rainha de Sabá». Com um pedaço de corda que trazia no bolso, enforcou-se.

[Aníbal Fernandes, in «Apresentação» de Balkis]

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