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Paul-Jean Toulet

O seu pai tinha um sangue africano misturado, à boa maneira colonial, com sangue francês da ilha Maurícia, aquela que ficava lá em baixo, no Índico, a dois meses de navios lentos que chegavam de Marselha sem atravessar o Suez. E o seu sobrenome crioulo, que parecia soar menos bem como Tulete, foi afrancesado até ao Toulet prestigiado por senhores de terras que só a gesto largo podiam dar ideia de um vasto poder em plantações onde crescia e morria, a perder de vista, uma imensidade de canas-de-açúcar.

De um deles, casado com uma francesa da França que o afastava e aproximava com intermitências dos Baixos Pirenéus e de Béarn, é que nasceu Paul, segundo filho destinado a um contacto materno de poucos dias porque a sua mãe, entregue em Junho de 1867 a uma medicina provinciana e oitocentista, morreria das complicações de um parto que tudo teve para correr mal.

O pai Toulet, com exigências sopradas de muito longe pela ilha Maurícia, viu-se obrigado a entregar a sua filha e o seu filho a parentes dispostos a sustentá-los. Coube a Paul a tutela de um tio que nunca lhe fez esquecer o vazio da mãe inexistente, do pai esfumado atrás do oceano, da irmã que vivia afastada de si. Mais tarde, por escrito, lembrou-se de que tinha vindo ao mundo num Béarn de formosas pedras; com um ar tão puro que se fazia uma volúpia, quase um perfeito sofrimento, bastando por vezes respirar o que descia das montanhas. Mas isto compensava mal o que era, para ele, uma dolorosa e central ausência. Flutuava à minha volta uma presença confusa que eu não distinguia bem da água que corre, dos animais, das instáveis nuvens. Logo que aprendeu a escrever assinalou-a por todo o lado em papéis, em paredes, em tudo o que a sua mão ainda mal treinada tocava, e o seu lápis podia riscar: Aqui jaz Emma Toulet, que morreu poucos dias depois de o Paul nascer.

[…]

As suas outras obras literárias hoje apreciadas são póstumas. O romance La Jeune Fille verte é de 1920, publicado logo a seguir à sua morte; o seu livro de versos Contrerimes, um perito desequilíbrio de ritmos e rimas, só muito mais tarde foi admirado.

À sua saúde, cada vez mais exigente em cuidados, calharia bem uma esposa vigilante e sofredora, que aliviasse um peso às obrigações dos seus familiares. Dez anos antes de morrer, o seu desespero de vida descolorida e marginal já era insuportável. Metido numa casa dos subúrbios de Paris, gritava à sua irmã: Não tenho vontade de sair daqui. E não tenho, também, vontade de aqui continuar. Não tenho vontade de nada, de viver e ainda menos de morrer. Adeus. Estou triste com estes jardins de subúrbio onde só crescem cacos de garrafa.

O que me resta fazer, senão casar-me?, diz em 1902 numa carta. Desde há várias horas penso nisto; gostaria de casar-me com uma viúva, porque uma mulher esclarecida vale por duas, o que me dispensaria, pelo menos uma vez, de a enganar. Em 12 de Junho de 1916 casa-se com Marie Vergon, que mostra nesse noivado a sua grande vocação para esposa-enfermeira. Instalado finalmente em Guéthary, na Aquitânia junto dos Pirenéus Atlânticos, foi-lhe concedida a companheira tardia e destinada a uma viuvez, se não com data marcada, pelo menos próxima. A senhora Debussy teve numa carta direito a esta acidulada franqueza: Farta de tratar de mim, a minha família casou-me; havia na Rafette qualquer coisa parecida com uma capela ou um oratório que nunca tinha servido para nada daquele género, e um padre jesuíta desocupado. […] Todos estavam com um ar de pessoas satisfeitas. Fazia um tempo de Junho muito agradável; e as senhoras choravam decentemente na prédica de circunstância.

O seu amigo ópio, uma penumbra de cortinados corridos, uma desarrumada companhia de jornais, livros e papéis, a gata Ubu-Reine e a grande vontade de mais um livro que se chamaria Le Meuble d’ébène acompanharam-no durante quatro anos. A hemorragia cerebral matou-o ao meio-dia de 6 de Setembro de 1920.

[Aníbal Fernandes, «Apresentação», A Minha Amiga Nane]

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