Este livro é uma galeria de retratos de figuras que, como se diz em Benilde, «não são deste mundo», figuras fantasmáticas, prometidas a uma existência liminar, que adquirem uma espécie de inteireza justamente na sua inconsistência ôntica.
A figura do fantasma tem acompanhado a história do cinema desde o século XIX até aos nossos dias, marcando presença numa grande diversidade de géneros fílmicos. Além disso, a própria arte cinematográfica tem sido, repetidas vezes, considerada e descrita como uma coisa espectral em si mesma. Em 1896, Máximo Gorki qualificou o cinema como um «reino de sombras», e, já no século XXI, Jacques Derrida afirmou que a experiência cinematográfica pertence à esfera da espectralidade. Deste modo, ir ao cinema implica necessariamente confraternizar com espectros, ser assombrado, quer os filmes tornem os fantasmas visíveis, quer não.
No contexto português, Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues surgem como os cineastas que reflectiram sobre a espectralidade do cinema de forma mais consistente. Atentando no funcionamento das suas narrativas de amor, loucura e morte, bem como nos seres que as protagonizam, votados a uma existência liminar, entre o mundo dos mortos e o dos vivos, este livro constrói uma galeria de retratos de figuras fantasmáticas, que, como se diz em Benilde ou a Virgem Mãe, «não pertencem a este mundo».
Tal como os retratos numa galeria são autónomos, e dados à contemplação individual, num percurso que se faz através da(s) sala(s) de exposição, também os capítulos deste livro são concebidos desse modo. Não se trata, então, de procurar activamente semelhanças entre os cineastas, nem tampouco diferenças, não obstante os pontos de contacto surgirem inevitavelmente, sendo, então, devidamente assinalados. A minha hipótese de trabalho consiste em elaborar uma espécie de mosaico no qual se possam ver em simultâneo (idealmente, em palimpséstica sobreimpressão) tantas configurações do mesmo problema de partida quanto objectos particulares de estudo (i.e., personagens de filmes) existem.
[José Bértolo]