«Dois amores fizeram duas cidades. O amor de si até ao desprezo de Deus: a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si: a celeste.»
[Santo Agostinho]
É mais comum celebrar os autores do que as suas obras. A Cidade de Deus, porém, que é uma espécie de outras Confissões elevadas agora ao nível do género humano, é indissociável da vida de Agostinho de Hipona, o seu tão persistente e esforçado autor. As razões próximas da obra brotaram de circunstâncias históricas bem precisas: o bárbaro saque de Roma, por Alarico e suas tropas, no dia 24 de Agosto de 410, e a necessidade de refutar aqueles que acusavam os cristãos de serem os culpados. Para o paganismo tardio dos séculos IV e V, com efeito, os cristãos e a sua religio, em virtude de rejeitarem o culto dos deuses tutelares de Roma e do imperador, de defenderem que se deveria «amar os inimigos», «rezar pelos que vos perseguem» (Lc 6, 27-28), «oferecer a outra face» (Mt 5, 39), etc., e de durante muito tempo terem recusado o serviço militar, teriam sido não só coniventes, mas objectivamente culpados desta punhalada no coração do Império. Atacado de fora pelas hordas bárbaras baptizadas no arianismo e de dentro pela moral e a doutrina nicenoconstantinopolitana, a chrisitiana religio, arguiam, haviam quebrado do tónus bélico dos soldados e amolecera a virtus dos cidadãos romanos. Tal acusação já vinha de trás, mas agora ganha renovada força. Agostinho escuta e não se conforma. A sua reacção ao saque de Roma e à acusação feita aos cristãos é-nos dada, a quente, logo em Sermões coevos, em 410, e no opúsculo Sobre a Devastação de Roma, em 411. Mas interiormente, no seu espírito, o projecto da obra A Cidade de Deus começara já a nascer, tanto mais que a isso era instado por variados amigos. Segundo alguns, é possível que a tenha começado a escrever ainda em 412. Em Setembro de 413 já estava a redigi-la, de certeza. Terminá-la-á apenas treze anos depois, em 426.
[«Introdução»]
Com o Instituto de Filosofia Prática.