Plana muito alto; domina a multidão, vê as estrelas e quer ir ter com elas.
Van Dongen foi, ele próprio, um pintor; vemo-lo hoje em museus de todo o mundo, mas bastante mais no Hermitage de São Petersburgo e no Púskine de Moscovo, e com uma permanente e generosa presença no Novo Museu de Belas Artes do Mónaco. Associamo-lo sobretudo a retratos de mulheres com olhos que um traço carbonoso sublinha na sua sensualidade insolente, e que imaginamos saídas de uma noite mal dormida em lençóis amarrotados.
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Em 1927, exteriormente a esta profusão de retratos publicou uma Vida de Rembrandt; um texto quase sempre sedutor e formalmente desarrumado (como nos é pedido enfaticamente para notarmos), confronto entre dois holandeses que pintaram até um limite de forças e em muitos dos seus passos — os que falam de mulheres, dinheiro, da encomenda de retratos, da inveja maledicente dos colegas do ofício — não ilude o impulso de Van Dongen se rever no biografado. Não é uma biografia, se lhe pedirmos que se ajuste às exigências da mais ortodoxa acepção desta palavra; Van Dongen entrega-se aqui à construção de uma imagem predominante sobre todas as outras que encontramos nas complexidades de um pintor e de um homem. Como Suetónio quando retratou os seus doze Césares, como os autores dos Evangelhos, detidos em episódios demonstrativos de um deus-profeta e muito menos no que foi o Cristo histórico, este é um «Rembrandt de Van Dongen» — retrato de um homem que pintou até à exaustão e com uma liberdade que apenas soube colar-lhe um rótulo — um pejorativo rótulo de extravagância — e nunca no seu tempo compreendido como anunciador do que viriam a ser consideradas importantes conquistas formais da pintura.
[Aníbal Fernandes]