Vénus, aqui autêntica e só perturbada pela lenda. O mito visitado pela seriedade de um biógrafo.
Em 1929 Miomandre publicou esta biografia de Vénus, um dos seus livros mais logrados e onde parece haver um desejo de ironia voltado para o que é vulgar chamar-se «verdade histórica». Olhando para Vénus como uma personagem autêntica e só perturbada pela lenda, Miomandre avisa-nos de que «passou a ser difícil discernir o verdadeiro daquilo que a imaginação lhe acrescentou». Com uma inesperada seriedade de biógrafo, tem hesitações nascidas da sua decisão de «só escrever a história, e não a lenda de Vénus»; e quando chega ao momento de fazer referência aos seus filhos, retrai-se porque se desconhecem muitas das suas aventuras e ele só quer falar «das que podem dar-se como garantidas». Também afirma que há poucos dados sobre a sua aventura com Mercúrio, mas que vai falar dela por ser de «inegável autenticidade». Para o biógrafo Miomandre, Vénus nascida da espuma das ondas, ou seja, com um lado terrestre, foi capaz de inquietar a pureza toda divina do Olimpo com a impura eficácia da sua sedução, mas acabou por ser vencida na sua imensa popularidade terrena quando frades de burel destruíram séculos mais tarde as suas imagens e fizeram suceder-lhe «uma doutrina nova, chegada do Oriente», que se propagava «com extraordinária rapidez no espírito das mulheres, dos pobres, dos escravos, dos humilhados, dos ofendidos, e vencia em poucos anos o sorridente e ingénuo paganismo com um papel civilizador que chegava ao fim.» A esta Vénus vencida e em plena época cristã, ainda surgiu o impossível amor de um tardio Tannhäuser. Mas hoje só lhe resta o seu planeta, «morada sideral, para lá do Olimpo destruído, de onde se vertem sobre nós as suas benfazejas ou maléficas influências, o planeta de esperança e beleza onde Ela elabora os nossos destinos de amor».
[Aníbal Fernandes]