A sua literatura cheia de meninos de coro, freiras lésbicas, padres travestidos, santos de canonização duvidosa, não dispensa uma forte lucidez sobre as técnicas da escrita. É exímio a urdir intrigas.
Em 1907, num país cheio de arrogância anglicana, decidiu converter-se ao catolicismo. A pompa do Vaticano e a sua religião de báculos e púrpuras, cheia de ornamentados rituais e símbolos, convinham-lhe ao gosto pelo espectáculo e à forma vistosa como gostaria de relacionar-se com Deus. Numa das suas viagens à Itália tudo fez para ser aceite entre os jovens da guarda nobile do papa; mas a sua entrevista de admissão «assustou» os seleccionadores: Ronald tinha ênfases, tons e gestos com um género de exuberância que punha de pé atrás os que tutelavam o bom nome e a tranquilidade dos corredores do Vaticano. Foi um golpe difícil de suportar. A Igreja de Roma não quis saber de mim, vou portanto troçar dela. (A consequência mais evidente deste estado de espírito virá a ser o livro Das Excentricidades do Cardeal Pirelli.)
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Este romance póstumo, por muitos considerado a obra de Firbank mais lograda e retido na gaveta porque esbarrava, ao que parece, numa falta de coragem (sua ou do seu editor) para o entregar ao público, é um carnaval de risos cruéis e melancólicos encenado por um católico «ressabiado» que inventa a Clemenza de uma Andaluzia a fazer lembrar-nos a de Sevilha, Granada, Córdoba… com nomes de personagens que oscilam entre as que nos são familiares em Espanha e Portugal, mas também outros que escapam a esta mais cerrada identificação geográfica. Nesta ficção que faz o seu jogo numa indeterminada Espanha sulista e com um catolicismo enfeitado por saudades pagãs, vamos confrontar-nos com uma Igreja tresvariada nos seus oficiantes e nos seus fiéis, e espreitar por um buraco de fechadura reconhecíveis verdades mas que foram aqui, num tempo que enchia a literatura com rajadas anticlericais, como que deformadas por um implacável espelho de feira.
Ronald Firbank viveu até ao dia 21 de Maio de 1926. […] Meses depois, o seu editor Grant Richards tirou da gaveta o desde há muito retido Das Excentricidades do Cardeal Pirelli, e publicou-o.
[Aníbal Fernandes]