«De manhã cedo um homem sai de uma taberna ao pé das docas, com o cheiro do mar no nariz e uma garrafa de uísque no bolso, a deslizar tão levemente na calçada como um navio que abandona a barra.»
Nos últimos dias de vida, em clareiras de lucidez que lhe permitiam o regresso a hábitos de escrita, Malcolm Lowry trabalhou no texto de Cáustico Lunar e desde há quatro anos tinha «parado» o primeiro esboço da novela a que ele quereria chamar Ghostkeeper ou Henrik Ghostkeeper, ou Lost and Found, ou I Walk in the Park, ou But Who Else Walks in the Park?, ou O. K. But What Does it Mean?, ou ainda Wheels Within Wheels, como ficamos a saber pelas hesitações registadas no manuscrito. Juntar estes dois textos no mesmo livro nada tem de arbitrário. São assombrados ambos por um destroço de barco, carcaça desfigurada pela usura do tempo e que se faz anúncio de uma inevitável mas indescortinável catástrofe.
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Malcolm Lowry tinha passado por dois períodos de tratamento psiquiátrico; o primeiro em 1935 — aquele que nos interessa — num hospital de Bellevue em Nova Iorque, internamento de dez dias celebrado à saída com uma vingadora bebedeira de quarenta e oito horas. É a experiência literariamente transposta para Cáustico Lunar, uma hiperlucidez visionária mais tarde diluída em opacidades anuladoras de toda a criação.
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Em Cáustico Lunar, o adolescente Garry vive obcecado pelo prenúncio de uma destruição universal sonhada através da imagem da carcaça de uma lancha de carvão anos antes encalhada ao pé de um hospital de Nova Iorque; em Ghostkeeper, Tom Goodheart associa o encontro que tem, com os restos de um salva-vidas naufragado, ao mau presságio que o domina sem nunca definir a sua mensagem nem denunciar a sua dimensão. Estes barcos destroçados são como que centro emocional em ambas as novelas, o foco que em Cáustico Lunar ilumina a percepção do mundo de Bill Plantagenet, que em Ghostkeeper projecta uma luminosidade sombria sobre o futuro de Tom Goodheart.
[Aníbal Fernandes]
Na capa: Débora Figueiredo, Desenho (2019).