Schopenhauer: «Se conseguires descer até ao coração do mais detestado
dos teus inimigos, tu próprio ali te encontrarás.»
Neste livro sobressai uma curiosa história de coabitação entre o assassino e a sua vítima. Lev M…, assumindo uma falsa identidade de médico, introduz-se nos mais íntimos círculos de um feroz ditador cuja eliminação física é preconizada pelos comités revolucionários de inspiração comunista. Mas o conhecimento profundo da natureza humana revela-se o pior dos inimigos da pureza revolucionária. Apesar de Kurílov ser visto por Lev M… como «o imbecil», «o cachalote», o «déspota frio», sentimentos de obscura piedade acabarão por fazê-lo fraquejar perante aquele enorme declínio do corpo roído por um cancro do fígado, aquela erosão, aquele doloroso crepúsculo de poder. E a Lev M…, quando escreve estas memórias e ele próprio já tem no seu passado um período de vida em que praticou, ao serviço da revolução socialista, actos de crueldade tão fria como a do ditador czarista, só lhe resta uma consciência melancólica de derradeiros dias, aquela que o sol ameno de Nice mal consegue iluminar. [Aníbal Fernandes]