«Mervyn, tranquiliza-te; vou dar ordens aos meus criados para encontrarem o rasto do que vou de ora em diante procurar e fazer perecer às minhas mãos.»
Marcado por esta fuga às normas, Ducasse escolhia no Paris dos intelectuais uma lateralidade impenetrável e interdita à curiosidade dos poucos que desejavam ver, em corpo, o homem tão fora dos princípios da literatura e dos costumes. Tem-se no entanto admitido que talvez tenha havido neste apagamento público a excepção que o fez privar de perto com o movimento político da Comuna, embora só haja para isso um argumento débil, o de existir em L’Insurgé, o romance de Jules Vallès, uma personagem dessa agitação popular chamada Ducasse e que se ajusta de forma surpreendente às características pessoais do escritor dos Cantos de Maldoror.
Nos seus Cantos destaca-se pelo desvio à estrutura geral o Sexto, tentativa de pôr o ponto final àqueles hiperbolismos enfáticos com um «romance», chamemos-lhe assim, (hoje vou fabricar um pequeno romance de trinta páginas, é confessado num preâmbulo pelo próprio autor), oito capítulos autónomos, visitados por um Mervyn loiro — como os outros adolescentes com passagens rápidas nos Cantos anteriores — que se entrega indefeso a uma intriga equívoca, perturbada na sua forma literária pelas audácias de estilo, pelas rasteiras da lógica, caras a Lautréamont, e a sugerir-se como paródia sofisticada aos romances de Eugène Sue, de Ponson du Terrail e outros, nessa época a singrarem num auge de popularidade.
Mervyn surge tão singular dentro dos Cantos, que podemos conceder-lhe o direito de libertar-se das amarras que o prendem aos outros cinco textos da saga maldororiana; e assim, isolado e a contar-se com imagens barrocas e ênfases hiperbólicas, ganha também o direito de ser vítima da atracção ambígua e punitiva de um Maldoror atemporal e ubíquo (desdobrado, para a execução da sua sentença, pela cega obediência do louco Aghone) que o destrói e com sublimidade o castiga sem saber, ao que parece, atribuir-lhe mais culpas do que vê-lo a rondar, loiro e adolescente, nas suas imediações.
[Aníbal Fernandes]